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Agora que já viram meu rosto sei que não me acham feio, pelo contrário, sem a máscara muitos aqui me acharam bonito, eu sou a tal falada e pouco vivida: Vontade. É porque inicialmente sou uma coisa boa. Chega do raso, esqueçam a beira da piscina onde dá pé e é confortável, na superfície se tem a sensação de que ali não se morre, apenas se aproveita. Parem de querer os pés no chão, é hora de deslizarem, flutuarem como bailarinas, sempre com uma ponta impecável, neste mar no qual não se enxerga o fundo.

Tem um momento que sinto muito orgulho dos homens, quando estão chorando, principalmente por lamentarem uma ação impulsionada por mim. Orgulho porque sei que mesmo sofrendo por tal ação, mesmo chorando e, às vezes passando fome, estão de fato vivendo. De vez em quando encontro outros seres que moram em vocês homens. Recentemente, num inconsciente qualquer encontrei o Motivo. Como estávamos naquele vazio, esperando o despertar ele me fez uma pergunta: de quem eu gosto mais, dos homens ou das mulheres. Lembrei que os machos costumam me chamar mais vezes, parece que este gênero tem menos medo de mim. Por outro lado são os que mais se equivocam, pois me perdem no meio do caminho. Parecem aquele idoso que pede ajuda a uma criança para atravessar a rua. Acham-me com facilidade na esquina, dou a mão a eles, atravessamos a rua e, já do outro lado, eles esquecem o porquê estão ali, porque passaram de um cruzamento a outro e logo procuram outra esquina e mais um menino para ajuda-los a atravessar a rua. Engraçado que mesmo quando estão sendo guiados pela Vontade, preferem sempre atravessar na faixa de pedestre. Portanto, pude perceber que este gênero não é o que eu mais gosto, já que mesmo estando nas profundezas procura a parte rasa, a superfície. Concluindo, eu adoro ser chamado pelas mulheres, este é um tipo de ser que realmente admiro. Claro que sou acionado com menos frequência do que poderia. Não as culpo. A Vontade é conquistada somente depois de muita análise, de muito raciocinar e de muito intuir, mas quando chego, elas sabem o que fazer, pra onde me levar, sou guiado por estes seres fantásticos. Funciono como um mero cupido, mirando minhas flechas aonde ela quer chegar, aonde qualquer uma delas quer atingir. Nunca vou esquecer-me de uma Jeniffer qualquer. Sim… ela estava cansada de ver o marido se divertir, de ter prazer em outras camas e ela esperar o seu prazer ser preenchido somente por ele. Depois de muitos conflitos morais internos, depois de não se importar com as opiniões de uma sociedade que vive em prol do patriarcado esta Jeniffer resolveu também viver outros prazeres. Diferente do homem, quase sempre mau caráter, ela disse ao namorado o que queria. Seu parceiro de tão envergonhado em perceber que vivia fora do relacionamento e ela não, disse (provavelmente da boca pra fora) vá viver. Daí, cara plateia, Jeniffer me pegou, como se eu fosse uma mochila com suprimentos para se alimentar durante sua jornada e se transformou numa loba. Vocês conseguem imaginar o que pode uma loba com inteligência humana? Podem ter certeza que os deuses antigos iriam temer Jeniffer. Ela saiu para caçar e comeu o que quis, matou por prazer, se alimentou do que achava bom e cuspiu o que só aparentava ser carne de primeira. O namorado ficou no seu trono de ouro, construído por uma sociedade do patriarcado. Mas não esperou tanto tempo assim, logo requisitou a prisão da loba. Ele alegou que ela estava causando desordem, ameaçando o seu reinado. A exigência de nada serviu, todos que tentavam prender a loba não voltavam para contar a história. Jeniffer amava a vida tanto ou mais do que amou seu namorado, o rei do trono. E antes de morrer, sabendo que seu namorado estava a sua procura para mata-la, a loba me chamou pela última vez e escreveu o poema mais lindo que já presenciei surgir. Lembro-me, ela pegou um lápis às pressas e da varanda do seu apartamento, enquanto o namorado batia a porta já prestes a arrombar, num pôr do sol que de tão lindo, inspira uma respirada profunda a mais, Jeniffer escreveu:

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Eu transbordo

Transbordo e também choro

A lágrima é para lembrar o quanto dói

Tenho angústias por saber que nenhum copo me cabe

Tenho náuseas ao pensar que poucos irão me segurar

Segurar o meu corpo, ou seria o meu copo?

Mas a tristeza dura somente alguns goles

Prefiro me alegrar com as goladas de alguns

Eis a minha necessidade

Minha potência

Esta é a minha felicidade

Aqueles que enxergam sempre o mesmo copo

São aqueles que não conseguem me segurar

E aos poucos que souberam beber do meu corpo/copo

Agradeço

E os faço lembrar que tiveram sorte, souberam desfrutar

Mas alerto: não se animem demais

Está na hora de me deixarem sob a mesa

Cedo ou tarde, entenderão que nunca paro de transbordar

E que até o homem mais respeitoso e afável,

Não mais conseguira me beber

Utilizará sua razão/ego para afirmar

Que já está com bucho cheio

Ou vai simplesmente concluir:

A bebida do segundo copo

Mesmo sendo com o mesmo líquido

Não traz o mesmo prazer do primeiro gole

A maior dificuldade destes será de assumir

Que não irão me aguentar

Meu copo nunca será um dia leve

A necessidade destes homens estará em querer

Em desejar outros copos

Em acreditar que em outros

Um dia irão conseguir esvaziar e a si contemplarem

Fato que não me cabe uma resposta

Só sei que o meu estará sempre cheio

Esperando alguns poucos

Com coragem demais

Moral de menos

Beberem de mim!!!

 

Depois de recitar o poema, voltei os olhos para o Motivo. Ele estava chorando, mas sua feição era de raiva. De todas as vezes que o encontrei nos inconscientes da vida, foi o único instante que o Motivo disse me invejar. Alegou que eu sou o único afeto que consegue tirar o que há de mais obscuro ou profundo do indivíduo sem causar nenhum tipo de dano, trazendo uma plenitude de fato, mesmo que por poucos instantes. Para explicar porque eu e não ele, o cara veio me contar uma história. Como estava ali, esperando ser acionado respirei fundo para não ficar entediado e sentei pra ouvi-lo. Ele contou o caso de uma garota de nome Jéssica que o havia acionado para encontrar uma chama em si mesma. Na verdade Jéssica tinha muitas vontades reprimidas (eu falo que todos preferem o senhor Motivo), casada há dez anos com um rapaz que a amava muito, fazia tudo por ela, mas também tinha muitos traços machistas e não era tão bonito assim. Jéssica sentia desejos por outras pessoas, adorava quando os amigos bonitos do seu marido ficavam na casa deles, de preferência bem à vontade, ela os marcava bem na memória e depois ficava um bom tempo se tocando no banheiro e, às vezes, somente de vez em quando, transava com o marido pensando no corpo, na barba do amigo rocando suas costas, aquele mesmo que estivera há duas horas ali, conversando com o casal. Jéssica me chamou, pois queria entender o que estava acontecendo com ela, porque estes desejos não a deixavam em paz. É o seguinte homens inocentes, quando alguém chama o Motivo é por não querer encarar as suas próprias profundezas, o Motivo vai utilizar a memória, a razão e a vivência da moça para tentar achar uma causa externa. O motivo é insistente, não vai embora até fazer a pessoa encontrar o que quer encontrar. Foi então que Jéssica percebeu que tais desejos profanos começaram a passar mais pela sua cabeça depois que ela descobriu que a sua melhor amiga, levava uma vida assim, cheia de desejos almejados e alcançados fora do casamento e com o marido (mais novo que ela) sabendo das coisas. Por algum tempo depois de descobrir, já que a amiga estava fazendo diversas confidências, Jéssica quis viver a vida da sua amiga Janaína. Só que as poucas vezes que tentou verbalizar isso para o marido foi hostilizada, puta foi o adjetivo mais tranquilo que ouviu. O Motivo a ajudou a entender que estava num dilema, a causa dos seus desejos foi ver a amiga vivendo seus próprios desejos sem preocupar com o que pensariam dela. Esta atitude abalava e muito a vida que Jéssica insistia em manter dentro da garrafa. Caramba, ao invés da garota se arriscar e se perder nas suas profundezas comigo, chamou o Motivo, arrumou uma causa externa culpando Janaína por estes distúrbios e se afastou da amiga. Perguntem-me de que forma? Claro que o motivo age mais no inconsciente, ficava tirando a amiga com certo exagero perto das outras mulheres do grupo, até chegar à conclusão que Janaína de fato a incomodava, a irritava. Ao invés de não se importar com o seu transbordo, Jéssica buscou um copo maior para o seu corpo acreditando que agora, com mais capacidade de armazenar graças a visão astuta do Motivo, não mais transbordaria. Não transbordar é confortável, não derruba líquido no chão, não precisa passar pano e também não molha a roupa. O homem esquece que o de fora é sempre momentâneo e que a qualquer instante pode chegar outro que vai te abalar, é inevitável fugir. Vocês buscam o Motivo para preencher o que faltam a vocês, temem estarem nas suas profundezas, em outro qualquer, daí se agarram ao que está fora, a um irmão, um marido, um namorado. Preferem vidas com ídolos a uma com autonomia. Nesta parte eu me lembrei deste caso que o motivo estava contando. Depois de tanto sofrer sem parecer sofrer, Jéssica enfim me chamou, ela teve vontade de tirar a própria vida. Uma Bovary do século XXI, mas seu problema não era com dívidas e uma vida de luxo, mas ao novo copo que já estava ficando cheio demais. Utilizando da sua vontade, Jéssica se matou no dia do aniversário de casamento. Deu vontade de causar um impacto maior. Já deu para perceberem a diferença entre mim que vou buscar o próprio indivíduo nas suas profundezas totalmente autônomas ao Motivo, preocupado em arranjar causas fora de si mesmos. Agora que sabem como eu trabalho, podemos passar para o próximo ato. Obrigado!!!

*Thiago Quinteiro é jornalista e filósofo.