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Dedico esta crônica à minha irmã Giovana de Marco Loro, aniversariante do dia!

Pensava com seus botões, já conformado com a insônia que se assoberbara diante do cansaço, enquanto se ouvia quatro bipes no relógio – desses made in China que não valem nada, exceto no dia em que for preciso fabricar um com as próprias mãos – representando as quatro horas de devaneios que invadiam seus pensamentos madrugada adentro. Pois a noite é para isto. Nela habitam os pensamentos obscuros onde a luz do sol não ilumina, invisíveis na escuridão de uma mente inquieta e turva. Quimeras como as viagens, e o trabalho necessário para se obtê-las; os prazeres, e a angústia necessária pra se obtê-los; os drinques gelados, e o suor necessário para se obtê-los; o paraíso, e a morte necessária para se obtê-lo. Nada é luz que não tenha sido escuridão um dia. Pois a noite é para isto: precisamos do escuro.

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O clima subtropical não se ausentaria, obviamente, deste enredo. Iniciou sua participação bem antes, aquecendo os ares deste forno que batizamos Atmosfera, deu prosseguimento cantarolando assobios fúnebres pelas frestas da janela donde se observa coisas estranhas desenhando o céu noturno. Já lá pelas quatro, hora em que se principiou esta estória, o ar se liquefez e quase que instantaneamente a água se solidificou, vindo a lançar toda sorte de ventos, pingos e pedras naquela mesma janela que outrora assoviava, e que só não se rompeu em cacos porque seus vidros são temperados – de qual tempero eu não sei, apenas conjecturo. Nada se via, muito se ouvia. Pois a noite é para isto. Aguçadas as audições, que passam horas do dia encharcadas de motores e buzinas, e de outros sons bizarros que alguns se atrevem a chamar de música brasileira, descansam na noite em sinfonias primordiais às quais nossos ouvidos estão treinados para apreciar desde a Criação. A tempestade era assustadora, mas acalmava. Porque era natureza, e nós somos natureza.

Enquanto as pedras d’água – que não se viam, mas se faziam ouvir, revelando-se colossais – surravam vidros e alvenarias, ele se pôs a imaginar quão frágil somos; diferentes do vidro, sem tempero. Não fossem estas proteções artificiais construídas pela inteligência humana, seria certamente varrido junto à enxurrada. Mas para sua própria estranheza, a esperança superou o medo, e a combinação insônia mais tempestade acalmou sua inquietude. Pôs-se a descansar, por fim. Pois a noite é para isto. No escuro, não existe feio ou belo. Existe nós.

*Anderson Loro é psicólogo e músico. Como psicólogo, atua em clínica particular, e no serviço público pela Prefeitura de Poços de Caldas, com pessoas em situação de rua e com grupos de homens denunciados por meio da Lei Maria da Penha. Como músico, atua em diversos grupos, dentre eles a Banda Capitão Vinil.