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Poços de Caldas

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Ser mulher e estar só

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“Na primeira vez você estranha, a rolha se quebra ao meio, cai pra dentro da garrafa. Sempre um homem que estava por perto foi o responsável por abrir o vinho. É meio que cerimonioso já, atribuir as aberturas das garrafas aos homens. Mas ali era só você. E quando se deu conta, já estava tranquilamente tomando sua taça, enquanto a massa aquecia ao forno e você lavava as louças que estavam na pia. Sente, com felicidade, o focinho do cachorrinho que se esfrega nas suas pernas.

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Espalha na cama os livros que precisa ler, liga a TV ao mesmo tempo, se deita. O cão foi com você e está lá, enroladinho atrás dos seus joelhos, como todo bom pinscher. À luz amarelada do quarto, já leu alguma coisa, pensou no que tinha que escrever e também no que não precisava, mas queria. Cochilou como efeito do vinho e do cansaço, ignorando o celular que insiste em não entender que há mulheres que ficam sós, e estão bem, obrigada. Acorda horas depois com o celular já desistido de berrar.

Pensa que a poesia do momento só existe porque nunca te ensinaram a ficar sozinha. Mais que isso, nunca acreditaram que pudesse, sequer conceberam a ideia de que, em uma noite ou duas ou em todas, uma mulher existisse para si mesma. A massa no forno era pra você, o vinho, aberto só para que você bebesse. A louça que lavou não foi a que outros comeram, era a que você própria iria usar. O que lia e escrevia construía sua história de vida, seu tracejado pelo mundo, a discussão sobre as mulheres, o sexo, a vida.

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Arrumar companhia masculina para aquela noite não exigiria tanto, sabia, ainda mais quando se trata de um jantar e cama. Poderia ter sido bom, mas você já aprendeu que nem sempre compensa pagar pra ver. Muitos diriam que isso é solidão, mas o que você sente é liberdade. Não há liberdade maior nessa vida do que ser mulher e não estar fazendo algo para o outro, recorrentemente, repetidamente, até o fim da vida, incluindo aí o sexo.”

Essa solidão, na verdade, menos tem a ver com estar só e muito mais com ser suficiente para si. Ser mulher é algo relacional, só pode ser concebido enquanto elemento comparativo com o masculino referência, já ensinou Foucault. Toda a educação de uma vida ensinando a ser para o outro, ser feminina implica em abdicar do que é masculino, como por exemplo, independência e autossuficiência. As características da feminilidade precisam ser meticulosamente criadas dia a dia num processo estético e emocional que demanda diferenciação e oposição ao homem. Dependência é uma delas. A mais terrível de todas. O que é uma pessoa convencida desde o seu nascimento de que precisa de outro ser, mais forte que ela, para sobreviver? Que só alcançará a completude e a felicidade, ao lado desse tal ser, que entre outras coisas, será forte e não demonstrará emoção, a não ser violência e raiva, esses sentimentos que lhe são reservados cuidadosamente e do qual fazem uso contínuo. Uma pequena mostra deles na mulher logo é apontado com histeria e neurose.

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Gritar, chorar e se desesperar são tratados na psicanálise, mas ao homem é permitido um berro, um soco, um tiro, atear fogo na casa. Alguém lhe deixou nervoso. Alguém, constantemente uma mulher, fez algo. Não foi ele, ele só reage. E reage muito mal. Saiu do trabalho nervoso, e ela… Estava tranquilo no sofá, mas ela… Era um bom pai, só que ela…

Recentemente, foi republicado um manual de esposa do ano de 1955, digno de desespero. Mais ainda porque se reconhece facilmente o quanto ainda há de manual em nossa educação quando somos meninas. O dono da casa não deve ser contrariado, ele é o dono. Você não deve questioná-lo se dormiu fora, se chegou tarde, ele está cansado e trabalhou. As crianças não podem incomodá-lo, você também não. A mulher deve inspecionar o ambiente para ver se está adequado à recepção do marido. Ali não está explícito, mas em outros, como “O Ato conjugal”, outro manual esdrúxulo de relacionamentos, abertamente há ordem, não é recomendação, é ordem, de que a mulher “dê ao homem o seu amor, TODA VEZ QUE ELE O QUEIRA”. Entre outras pérolas, que qualquer homem quando chega em casa só pensa em duas coisas, jantar e sexo, não necessariamente nessa ordem, e que, cumpre à esposa, os dois. Lembrando aqui que, até a Constituição de 88, sexo a força com a própria esposa não era crime, e até hoje, dificilmente, mas muito dificilmente, algo assim será punido.

E eu espero que quem esteja lendo já questione o porquê de tanta porcaria ser citada nesse texto. E, na verdade, o motivo é apenas um, perceber realmente o quanto avançamos na prática e o quanto ainda estamos presas nesse ideal de mulher. O cenário não muda tanto, mas as artimanhas agora têm um grau bem mais discreto. Ninguém vai te orientar abertamente a deixar a casa limpa, não precisa, é subentendido que é função da mulher. Alguém já viu um homem ser chamado de porco quando entrou na casa bagunçada da família? Alguém já presenciou os tios disputando como clarear pano de prato de forma mais eficiente durante a Ceia de Natal? Algum avô ganha nhoqueira de amigo secreto? O poder hierárquico de gênero é algo performativo. Reiterado, repetido, não é triunfante, é cotidiano, pequeno, é a política dos detalhes inscrita nos corpos.

Assim, que entre os detalhes mais importantes da desconstrução, de fazer o caminho inverso, está aprender a superar tudo o que nos ensinaram sobre incapacidade de estar e viver só. Dormir sozinha ou estar sozinha em um ambiente, mesmo de dia, ainda é assustador para muitas mulheres e não é a toa. Nos ensinaram a fragilidade o tempo todo. Um ser criado para não ser além do outro, como pode se realizar sozinho? Se ao olhar para um homem que vive só aos quarenta anos de idade, as pessoas lhe enxergam como bem-sucedido, bom partido, e a mulher nem é bom comentar, mas a infelicidade é lida imediatamente na cara de qualquer que ouse viver para si.

É preciso superar essas lacunas, ter ou não família precisa ser escolha real. Estar sozinha é fundamental para qualquer pessoa em vários momentos da vida e isso precisa ser considerado no ato de educar. Recentemente, pesquisas sobre masculinidade apontaram para dados muito preocupantes na educação familiar diferenciada para meninos e meninas.* Uma das questões é a de que a menina, ainda muito pequena, é recompensada, inconscientemente pela família, sempre que pede ajuda para resolver situações, e recebe mais carinho conforme demonstra fragilidade ou medo. Nem é preciso mencionar que com os meninos ocorre o extremo oposto.

Independência é algo que precisa ser construído e a solidão, ainda que temporária ou esporádica, tem relação com ela no sentido de autossuficiência para a vida. Quem foi ensinada a não conseguir passar uma noite sozinha não pode construir relação alguma de forma horizontal. Quem aprendeu a idealizar um homem que lhe protegeria, a sentir segurança em demonstrações de posse e controle já entra em relacionamentos inferiorizada, sempre! Ninguém vive sozinho, óbvio. Nenhuma de nós realiza nada isoladamente no sentido social. Mas entre compartilhar e depender há diferença abissal. Assim como entre amar e ser do outro, entre viver e servir. Se relacionar a partir do vazio plantado nas mulheres abre espaço para relações abusivas e inferioriza indefinidamente a mulher na relação, já que, dificilmente pela trajetória de educação, ela encheu sua vida de interesses próprios, alegrias e momentos que ultrapassem o viver para outro.

A educação considerando as questões sociais de gênero é mais que urgente, ela é determinante de facetas da violência estrutural da sociedade, arraigadas nas formas de organização familiar. Quando, ao menos em parte, vislumbramos a possibilidade de quebra dessa dependência que não é natural, caminhamos um pouquinho a mais para a liberdade.

https://edicioneslasocial.files.wordpress.com/2017/03/masculinidades-web.pdf

*Andréa Benetti é pedagoga, formada na Puc Minas pelo ProUni, mestranda em Educação pela Unifal, pesquisadora de gêneros e juventude, e conselheira tutelar em Poços de Caldas, regiões sul/oeste.

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