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Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

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Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?
Cia Conscius Dementia apresentou espetáculo "Liberdade, Liberdade" na programação do Julho Fest (foto: divulgação)
Cia Conscius Dementia apresentou espetáculo “Liberdade, liberdade” na programação do Julho Fest (foto:Vivian Quiuqui)

Neste 2019 de desafios diários para o artista brasileiro, a Cia Conscius Dementia escolheu presentear o público com a reabertura de processo do espetáculo “Liberdade, liberdade”, que é uma montagem que estreou em 2014. E quem foi nas duas apresentações deste ano pode experimentar um mesmo espetáculo em dois formatos um pouco diferentes. Na Mostra de Processo, em junho, atores com base neutra, dando vida aos personagens e entoando o canto com vozes a capela, num intenso coro sonoro e corporal, compondo o cenário. Já no mês de julho, na reestreia do espetáculo, vimos elásticos nos corpos simbolizando uma liberdade limitante que controla movimentos, ações, palavras, e a poética de uma voz de fora que canta acompanhada de teclado e percussão ao vivo, enquanto a massa corporal organiza o palco onde são vivenciadas as cenas.

Liberdade, qual liberdade? O que é liberdade?

É grito necessário, desabafo que diz do antes, do hoje e relata um desejo de sempre. Ainda não sabemos o que é ser livre. Liberdade é ideal e luta de grandes grupos que ainda são vistos, lidos e tratados como minorias. “Sou apenas um ator, uma feminista, uma bicha, uma revolucionária de teatro”.

A primeira visão são imagens congeladas de silenciamento, prisão que se vive como preço da liberdade de algum feito anterior. Histórias do passado que nem deveriam ter acontecido e do tempo presente que precisamos mudar com urgência, sobre as várias e mais inimagináveis formas de violência – física, verbal, psicológica. Essas torturas ficam gravadas na memória do expectador e doem justamente por serem a representação das experiências reais de tantos e tantas, a todo momento. E nesses casos o sangue, a dor, as marcas e a violação não são cênicos.

É pesado e dolorido pensar nessa relação das cenas deste espetáculo com a realidade, e é aí que a “magia” da arte acontece, fazendo um barulho gigantesco dentro da gente que está ali experimentando as sensações a cada dramatização. É visível a cumplicidade, sintonia, entrega, imersão, a responsabilidade e compromisso de tocar neste tema, de palavra única repetida que tem tanto grito implícito. “Liberdade, liberdade” é deslumbre, ilusão, utopia. Liberdade é sonhar acordado existindo.

A arte é a “arma do artista” que canta, dança, fala, grita, ri, chora, emana verdades. E há momentos em que atores e público conseguem por pequenos instantes rir em uníssono, descontrair, quebra-se a tensão e a parede que separa artista e público. E mais uma vez a arte assume seu papel encantador, “dando tapas com luva de pelica”, trazendo leveza logo após o estopim de um cruel fuzilamento, perseguição ou execução na guilhotina.

Somos livres?

Houve quem, na melhor das intenções, acabasse guilhotinado pela própria lâmina democratizadora de idéias. Interrogado, preso, invadido, torturado, fuzilado por discordar ou ainda censurado por despertar questionamento. Por ler, escrever, por falar ou cantar o que “não era apropriado”.

Houve também quem fosse acolhido, aclamado, reverenciado por praticar, orientar e gerenciar tantas execuções e desumanidades. Morrendo de causas naturais, de velhice, no conforto do seu lar. Injustiças essas que carimbam diariamente documentos de identificação social com a marca d’água da nossa falta de liberdade.

“Liberdade, liberdade” traz mais perguntas do que respostas, como toda boa arte deve ser, transformadora. Atores em cena repetindo versos que tantas outras vezes já ecoaram por ruas, teatros, praças, cativeiros e tantos lugares que nem se sabe. Um canto que é revolução, é resistência, é luta que ainda podemos cantar enquanto artista, enquanto povo, enquanto ser humano. Palavras que ainda não nos foram tiradas, e nunca serão. Algo muda dentro, uma vontade de sair e ser melhor pra construir as próprias liberdades. Um desejo intenso da alma: lutar, quebrar velhas estatísticas, padrões, expectativas, correr livre realizando os sonhos próprios e estender a mão fazendo corrente humana e conquistar o mundo que é de todos nós.

Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais?

*Aria Nery é produtora cultural, artista plástica, atriz, aspirante a poeta e musicista nascida em São Vicente (SP), mineira de coração e criação residente em Poços de Caldas (MG) há 14 anos.