O mal do século em cena

Teatro
Foto: divulgação

Aconteceu no sábado, dia 10 desse mês, a estreia de “Abulia – Espetáculo cênico musical”, com texto assinado pela cantora Jesuane Salvador, que dividiu o palco com o violonista Antônio Cruz e com a atriz Selma Mistura. A estreia, que fez parte da programação do “Poços é Jazz Festival”, tem patrocínio do DME Participações e apoio da Prefeitura Municipal de Poços de Caldas e da Secretaria Municipal de Cultura. O espetáculo também conta com o apoio da GSC Eventos Especiais e quem assina a produção executiva do projeto é a produtora Chiara Carvalho.

A nova produção poços-caldense tem como principal ponto positivo o protagonismo feminino presente na sua execução. Isso fica claro desde a idealização e dramaturgia de Jesuane, passando pela produção executada por Chiara e desembocando em cena na personagem principal, Catarina, interpretada por Selma. A força do protagonismo feminino de “Abulia” não está no ineditismo desse modelo de criação e gestão, uma vez que a companhia local Conscius Dementia, por exemplo, também é composta majoritariamente por mulheres. Entretanto, colocar em cena Catarina, uma mulher que reflete sobre sua própria solidão e suas angustias, tem um valor simbólico significativo dentro do contexto sociopolítico atual de ataques às minorias.

Contudo, o alcance do protagonismo feminino não chega claramente ao discurso de Catarina, os questionamentos da personagem principal giram em torno do que é descrito na sinopse como: “o diálogo psíquico de uma mulher com as máscaras sociais que dissimulam sua verdadeira identidade”. O texto apresenta a personagem, em um pequeno apartamento no meio de uma metrópole, revivendo, em estado de abulia, as escolhas feitas por suas “máscaras sociais”. A narrativa se dá, portanto, com a Catarina sendo sua principal interlocutora, em breves passagens outros personagens, como a figura do pai, exercem essa função. Esse aspecto, ao que me parece, trouxe para a encenação duas dificuldades: a integração do público à cena e a ação dramática com pouca urgência.

Em relação à primeira, a tensão conflituosa entre Catarina consigo mesma leva a cena para uma instância extremamente psicológica e, portanto, etérea. E isso, a meu ver, dificulta que os espectadores se tornem cúmplices da personagem (ou seja, que eles também sejam partícipes da ação), pois as motivações e os afetos de Catarina se perdem em meio aos próprios pensamentos e não ganham concretude em cena. Já no que diz respeito à segunda dificuldade, o texto apresenta um recurso dramatúrgico que poderia trazer urgência para a cena, a possibilidade de a personagem atentar contra a própria vida. A eminência de um suicídio, entretanto, não foi capaz de trazer ação e urgência para a cena, possivelmente em razão de a encenação ser construída predominantemente em cima da palavra. Apesar disso, o discurso muitas vezes volátil de Catarina encontrou ressonância em algumas das pessoas presentes na plateia, que chegaram a tecer os seguintes comentários durante a sessão: “forte”, “perfeito”.

Embora a pesquisa cênica de “Abulia” ainda esteja no início, tendo em vista que realizou apenas duas apresentações, é um espetáculo que provavelmente voltará aos palcos da cidade pela importante temática. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2020 a depressão será a doença que mais causa afastamento do trabalho no mundo. A mesma pesquisa aponta que no Brasil, cerca de 5,8% da população tem a doença, o que faz do país o campeão de casos na América Latina, atingindo um total de 11,5 milhões de brasileiros. Nesse sentido, o espetáculo colabora substancialmente com a necessidade de trazer para cena um debate que ainda é tratado com muito desconhecimento e despreparo por grande parte da população.

Em relação à pesquisa cênica, o espetáculo aponta para um caminho que converge com a investigação de outros grupos locais, ao propor, como descrito no subtítulo, um ‘espetáculo cênico musical’. Porém, as cenas acontecem se intercalando com a trilha sonora executada ao vivo pelos músicos Jesuane e Antônio, de modo que a construção da narrativa se dá em blocos. Entendendo o espaço teatral como um espaço de afetos, ou seja, onde os corpos afetam e são afetados, o desafio de “Abulia” é conseguir criar uma via de mão dupla na relação dos músicos com a atriz. Fazendo com que os músicos e a música sejam transformados pela cena, na mesma medida em que a cena é transformada pelos músicos e pela música.

O desafio apontado acima pode ter como causa e/ou agravante a ausência de uma direção geral na ficha técnica, e isso nos leva a crer que a criação se deu com uma auto-direção, o que em si não é um problema. Entretanto, se tratando de um monólogo e com texto construído a partir de um conflito psicológico, a falta de um olhar “de fora” – ou seja, uma direção – implica em uma cena pouco inteligível. A montagem se apoia principalmente na palavra, algumas vezes monocórdia, e as poucas ações presentes não dão conta de evocar com potência as imagens presentes no texto. O cenário, composto por três cadeiras, três peças de roupas e alguns objetos como uma bacia com água, não é utilizado como recurso desestabilizador da atriz, o que auxiliaria na sua presentificação em cena, mas de maneira representacional.

Por outro lado, o próprio trabalho aponta possíveis caminhos para a continuidade da pesquisa. A melhor cena, em minha opinião, acontece quando Selma sobe em uma das cadeiras e simplesmente olha o público e se deixa ser vista por ele enquanto a trilha sonora é executada. Nesse momento, acontece a integração necessária e indispensável para o teatro: a atriz, o cenário, a música, os músicos e o público respiram juntos, se tornam uma unidade que habita o instante. Fato importante para nos lembrar que o teatro é a arte do presente, como defende a diretora francesa Ariane Mnouchkine.

Por fim, os desafios apontados nessa análise não se restringem à produção de “Abulia”, mas abrangem toda cadeia teatral da cidade. É notório que vivemos em um período de transição em que as novas pesquisas cênicas claramente buscam romper com o teatro poços-caldense tradicional, que tem como principal característica o textocentrismo. Essa ruptura é importante, sobretudo, porque está diretamente ligada à capacidade de fomentar e formar público, pois, enquanto deixarmos nossos convidados láááááá na platéia simplesmente ouvindo nossa verborragia, não estaremos nos afastando somente do público, mas do Teatro. É preciso deixar livre a passagem para que o espectador entre e seja co-autor da obra, para que ele saia da passividade e venha para a ação conosco, para que ele deixe de ser apenas um “voyeur” e seja parte fundamental do jogo.

Em suma, são vários os caminhos para se alcançar esse objetivo, minha aposta é na criação centrada no corpo em detrimento da palavra, na ação em detrimento da ideia. Resta-nos a missão de construir juntos um novo teatro poços-caldense (ou novos teatros), e para tanto, uma provocação de Samuel Beckett pode nos nortear: “Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor”.

Valber Rodrigues é caipira de Poços de Caldas, bacharel em teatro pela UCAM-RJ, pesquisa atualmente o jogo das máscaras e outras formas animadas.
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