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Imaginar é o ócio de qualquer civilização. Recentemente, dei uma aula sobre o poder do idealismo. Quando não trabalho diretamente com autores da filosofia na sala, mas sim, com assuntos ou conceitos como neste caso, gosto de partir de algo ou fato que seja comum aos alunos para iniciar o pensamento e então discorrer com o tema na aula. Uma boa dica pra isso é alinhavar o tema com filmes, mas como não posso perder tempo e nem comer horas de aula passando filmes, normalmente a disciplina de Filosofia no Ensino Médio tem uma aula por semana, peço para assistirem antes. Como também sei que poucos assistem, faço uma sinopse antes de iniciar a aula sobre o tema. Voltando ao que interessa, sobre o idealismo lembrei-me de um filme que achei intrigante, “De Olhos Bem Fechados”, última obra de Stanley Kubrick, protagonizado por Tom Cruise e Nicole Kidman. Tom é um médico de grande prestígio na alta sociedade, Nicole é sua esposa que tem tudo, nada lhe falta numa vida perfeita de um casal bem sucedido com dois filhos. As primeiras cenas da película acontecem numa festa de um homem rico e poderoso, Nicole é assediada por um senhor charmoso e ela diz que é casada e se afasta. Tom salva uma jovem que teve overdose por consumir cocaína na festa. Ambos conseguem sair muito bem dos prazeres do corpo como sexo com um homem elegante ou consumo de drogas para elevar a potência (mesmo que temporariamente) do próprio corpo. O casal sempre conseguiu se manter longe dos prazeres que vem de fora, entre os dois se busca sempre prazeres, mas através de um campo de força moral, conseguem afastar tudo que vêm de fora. Na vida real é assim, às vezes, se ignora uma cantada, um flerte, uma vontade de ir ao bar tomar cerveja com os amigos pela ideia de um bom casamento, pela ideia de pensar que como casal a felicidade plena só acontece quando estão juntos. Mas será que é sempre assim? É comum num casal apaixonado ouvir o homem dizer que a sua felicidade está nela e, mais ainda, ao contrário. É como transferir, através de um ideal, a sua condição de felicidade para outrem. Esta situação é mais fácil? Com certeza, mas não é verdadeira. Para o hedonismo, é o ser e somente o próprio ser, o merecedor da sua própria felicidade. Até parece um conceito bem óbvio, mas sempre que dá, procuramos transferir para o outro a nossa condição de felicidade, e até mesmo de liberdade. Isso também ocorre num momento de tristeza, de dor, estamos sempre procurando culpados. Voltando ao filme, quando Tom e Nicole chegaram a casa, ficaram ainda conversando na cama, enquanto fumavam um baseado. Aparentemente, ali, eles conseguem ser eles mesmos. Conversando sobre a vida, Nicole faz uma revelação. Ela confessa que no último cruzeiro que fizeram, se sentiu atraída por um marinheiro da embarcação, tão atraída a ponto de chegar a pensar por algumas vezes enquanto estava no navio em largar Tom e o filhos para viver uma aventura com o marinheiro. Tom fica sem muitas palavras, os dois dormem. No outro dia, quando cai a ficha, Tom fica transtornado em saberque sua mulher já pensou em largar a vida sonhada e desejada por muitas para viver um romance com um marinheiro que ela viu uma vez na vida. Quem quiser saber o que acontece com o personagem vai ter de assistir ao filme.

O importante para se trabalhar aqui é primeiro apontar como vivemos atrás de ideais e como eles são fortes, como pesam na vida quotidiana de todos. No filme, a mulher revelou um desejo que está fora da vida dos dois. Como assim ela sentiu tesão por outra pessoa? Ela pensou em transar com outro? Ela não pensou no seu marido bonitão, rico e bem sucedido? Como isto aconteceu? Será que está louca? Qualquer um ao assistir esta cena do filme poderia fazer tranquilamente qualquer uma destas perguntas, senão todas. A idealização monogâmica quer sempre demonstrar que com um único parceiro, todos os seus desejos podem ser alcançados, que nada fora importa. E o que poderia pensar o personagem masculino: será que não a satisfaço sexualmente? Será que ela não me acha mais atraente? O que estou fazendo de errado? Ela não gosta mais de mim, não me ama? Fato é que para o outro, quando o parceiro está buscando algo fora da bolha do casal, vai automaticamente se perguntar o que está fazendo de errado que levou a parceira a procurar um prazer que está fora. Isso não quer dizer que o amor acabou. Apenas está mostrando que nem sempre, aliás, em muitas vezes durante um dia, o outro sente prazer pelas sensações vividas dentro da experiência da vida quotidiana. Não quero ainda entrar neste mérito. Vamos entender um pouco mais o porquê da idealização. Viver pensando em como será, viver imaginando uma vida perfeita, sonhando com o príncipe encantado, sonhando em se casar com uma mulher gostosa que não gosta de sair de casa (a não ser quando o maridão está junto), tudo isso é muito bom. Um exemplo interessante, para deixar as coisas mais claras é a mega sena. Uma loteria da Caixa Econômica Federal que distribui milhões de reais para quem acertar seis dezenas em sessenta números possíveis. Se você utilizar a lógica, a matemática, vai perceber que a chance de ganhar na mega é de uma em milhões de possibilidades. Agora te pergunto: por que mesmo sabendo da chance quase nula de ganhar, continua-se jogando? Não precisa de muito esforço para responder: é um valor baixo que se aposta para sonhar. O apostador vai ganhar? Pouco provável, mas sempre que se joga é impossível não imaginar o que se faria com a bolada, quem poderia ajudar, onde compraria uma casa, quais carros teria, o que daria para o seu pai e sua mãe. E quando a pessoa está insatisfeita com o seu trabalho a imaginação vai mais longe. Começa a pensar o que falaria para o seu chefe “carrasco”, quantas pessoas no seu serviço mandaria para aquele lugar, que finalmente iria ter coragem de chamar a colega de trabalho (linda e gostosa) para sair e o discurso com a gostosona poderia ser este: não é pelo dinheiro gata, é que agora eu tomei coragem!!! Ah… também dá para se vingar daquele familiar que vive sugando o dinheiro da sua avó e dos tios, aquele que você detesta, pois mantem as relações familiares só pensando no dinheiro dos parentes e que ninguém mais vê, somente você. Daí quando fala, os outros te chamam de implicante. Se ganhasse na loteria é claro que ajudaria muitos parentes, menos aquele que só pensa no dinheiro dos demais, seria uma forma de se vingar.

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Perceba que são inúmeras possibilidades trazidas por ideias quando se pensa no que fazer com cem milhões de reais. É por isso que se aposta, quando alguém passa meia hora pensando no que vai fazer com a bolada da mega, já valeu pelo dinheiro gasto na aposta.

A mega sena foi um dos exemplos, fato é que o tempo todo a sociedade nos convida a sonhar, a imaginar, a idealizar. Estas idealizações são tão importantes para o homem a ponto de pagar (com dinheiro ou com liberdade) para continuar sonhando. Uma mulher pode não ser tão bonita quanto a Megan Fox, mas comprando o batom da atriz, aquela mesma mulher pode se sentir mais bonita, pode se sentir bela porque está usando o batom da Megan Fox.

Bem… já deu para perceber que a idealização está em todo lugar e abraça todo mundo. Não tem como escapar. Antes de prosseguir, outro exemplo, a política. Aristóteles tem uma frase famosa: o homem é um animal político. Que se pode entender, dentro das classificações que o filósofo grego fazia no seu mundo ordenado que o homem é o único ser capaz de fazer política. Política, desde o período de Platão, se entende como a arte de se relacionar com outras pessoas dentro da sociedade, já que é neste ambiente que pode acontecer conflitos. Por que evitar conflitos? Porque é necessária uma relação harmoniosa, isso quer dizer que é necessário administrar os desejos individuais e os coletivos de uma forma que todos possam viver bem nesta sociedade. Ora, se o hedonismo é arte de administrar seus próprios desejos neste mundo vida, isso quer dizer que este conceito é contrário a política, que não pode haver, por exemplo, uma política hedonista? Este não é assunto para agora, o que posso adiantar é da possibilidade sim de pensar o indivíduo dentro da política (algo universal). Na contingência do pensamento a palavra chegou, universalidade. A política tenta estabelecer um padrão, uma forma de vida e de conduta, visando a paz entre milhares de cidadãos dentro de uma sociedade. Para tal, é necessário seguir ideais. Tem uma palavra-conceito, muito utilizada dentro da sociologia e da filosofia política que é ideologia. A ideia na política é tão importante que o eleitor cobra dos partidos e dos políticos que se tenha ideologia. É comum assistir um comentário sobre política em um telejornal e o intelectual da vez lembrar que está faltando ideologia aos partidos, aos políticos de uma forma geral. Mas trazendo rapidamente o conceito de Karl Marx (1818-1883), esta palavra não é só o conceito de visão de mundo para orientar uma sociedade. A ideologia é utilizada para mascarar a realidade. Portanto, quando um intelectual cobra mais ideologia dentro da política, é como se ele estivesse pedindo aos partidos que utilizassem métodos mais sofisticados  para alienar (enganar) a população. Isso quer dizer que nós, o tempo todo adoramos a idealização. O homem vive de ideias por ser mais fácil ou mais confortável que viver a realidade.

Tem um texto de Kant que trata justamente desta facilidade de se viver. Kant foi um filósofo alemão e um dos grandes responsáveis pela fundamentação racional dentro da filosofia. Mas uma produção sua de 1784: Resposta a pergunta – O que é o Iluminismo?traz uma reflexão de Kant, onde ele questiona porque o homem vive sempre subordinado àqueles que tem poder. Por que são poucos que realmente buscam o conhecimento? Sapareoude, ou melhor, ouse saber. O filósofo aponta que temos de sair da menoridade, para realmente ir atrás de conhecimento, ir ao encontro de si mesmo. Embora esteja dentro de uma universalização, o texto tem uma preocupação do ser se conhecer, conceito muito importante dentro do materialismo e hedonismo. Pode-se entender que o próprio idealismo é um dos responsáveis pela permanência do homem em geral na menoridade que Kant traz. É óbvio que a intenção do filósofo não é esta, mas o importante é tratar de como se pode utilizar o texto, da possibilidade que aqui cabe. Fato é que viver as ideologias, viver dentro de morais que prendem o corpo, para o hedonismo é viver uma menoridade. O hedonismo é uma excelente ferramenta para o indivíduo conhecer a si mesmo e a levar a um próximo passo, a autonomia que por sua vez, também pode levar o homem a sair desta condição de menoridade abordada em Kant.

Talvez ainda não se tenha convencido do poder do idealismo e como última fundamentação, seja bom falar do onipotente, onisciente e onipresente, que tal falar de deus? Não há justificativa maior para explicar a força do idealismo. Não há idealização maior que inventar um ser supremo, imortal, já que o homem é mortal. Viu-se a necessidade de inventar deuses possuidores de força sobre humana para dominar mundos e viver pra sempre.

O idealismo conforta. Imortalidade é o grande desejo dos humanos, várias lendas foram criadas. Deuses, demônios, vampiros, fantasmas, heróis, magos e sábios. Personificação de seres que, dependendo da lenda contada, podem viver pra sempre. Com o surgimento do cristianismo (século II depois de Cristo), é bom lembrar que Igreja demorou mil anos para se expandir por todo o mundo e se tornar uma grande potência a ponto de direcionar o modo de vida de quase todas as sociedades existentes, houve a expansão do monoteísmo, a crença em deuses (gregos, polinésios, hinduístas e outros) foram se tornando cada vez menores e voltados para grupos ou comunidades.

A religião trabalha com um medo frequente na humanidade, o medo de morrer. A crença em uma entidade imortal e, posteriormente, a certeza dita pelas religiões de que a alma não morre, que o espírito transcende esta realidade, é realmente confortante para o homem. O indivíduo pode viver cinco dias, cinco anos, cinquenta anos, mas tem a certeza de que um dia vai morrer, não é assim? Com a crença num deus imortal que direciona o ser depois da sua morte para locais onde ele continua vivendo (claro que de forma diferente), sem o corpo, é muito tranquilizadora. Ora, se há uma finitude inevitável no corpo, que tenha então algo mais, algo além, metafísico, nada melhor que trazer o conceito e o entendimento do homem possuidor de uma essência que não morre, possuidor de um espírito que está além da vida quotidiana. É angustiante pensar que um dia a vida acaba, então se vive pensando no que está além, no que pode acontecer depois. O homem foi feito a imagem e semelhança de deus, portanto, para criar um ideal de imortalidade ao indivíduo, primeiro é necessário mostrar que deus é imortal. Partindo deste princípio, todo o resto que não é deus é possível por causa da sua própria invariabilidade, da sua permanência. Dentro da moral cristã, se faz o bem pensando que, depois da morte, o espírito bondoso vai para o paraíso. Pode-se pensar que através desta crença não há um encontro ideal com a morte. O corpo padece, mas a alma, esta permanece. Este conforto é importante não apenas para o homem não se angustiar com a sua própria morte, mas também com aos demais, por exemplo, para confortar o ser quando se perde um parente ou um amigo querido. O filósofo Santo Agostinho que tinha uma ligação importante com sua mãe, não ficou triste quando a mesma morreu. Ele disse que não precisa chorar, já que ela não havia morrido, que tinha só ido para outro lugar, mas que não era o seu fim. Não vendo o fim da sua mãe, o filósofo certamente não via o seu e, mais que isso, não tendo o fim de ambos existe a possibilidade do reencontro.

Um filósofo que trabalhou de forma interessante a questão da morte foi Montaigne, na sua grande obra Os Ensaios. Este pensador não crítica de forma direta a Igreja, mas revela que é preciso retirar a máscara que encobre a morte, pois vive melhor, aquele que sabe que sua vida pode acabar a qualquer momento:

Onde quer que vossa vida acabe, ela está toda aí. A utilidade do viver não está na duração: está no uso que dele fizemos. Uma pessoa viveu muito tempo e pouco viveu. Atentai para isso enquanto estais aqui. Ter vivido bastante está em vossa vontade, não no número de anos. (MONTAIGNE, p. 81)

Outra vertente interessante para retratar a relevância do idealismo escapa de deus, mas não o abandona, é a própria religião. Temos milhares de religiões e crenças espalhadas por todo local onde os homens habitam. Um livro que trata tanto da crença em deus quanto da própria religião é de um grande filósofo do século XIX, infelizmente, pouco estudado na academia, Jean- Marie Guyau era francês e morreu novo, uma obra que chamou atenção de muita gente foi A irreligião do futuro. Nietzsche leu Guyau e, certamente, foi influenciado pela sua obra. Guyau fez um excelente estudo do surgimento, mas principalmente, de como as religiões se difundiram por todo o mundo. Nietzsche chegou a afirmar que “Deus está morto”, no sentido de encontrar uma filosofia que está além da moral cristã e, com isso, deus poderia morrer. Guyau não chega a ser tão radical, mas traz uma explicação importante. Ele afirma que os homens mais inteligentes estão mais sujeitos a terem crenças ou religiões. Normalmente se pensa o contrário. Aquele que tem menos conhecimento é mais religioso. Na verdade, as religiões não são mais difundidas em classes mais baixas que as mais altas, na questão de valores econômicos. O que muitas vezes acontece é de se ter em pessoas mais pobres uma devoção maior. No entanto, isto pode ser explicado. A devoção entre as pessoas com menos dinheiro é maior, por não terem tantas coisas para se apegar, para muitos funciona como a última esperança. O devoto de uma Igreja Pentecostal, que foi usuário de drogas, perdeu seus bens e sua família e se agarra na religião como último recurso, vai realmente ser mais fiel a tudo aquilo que está o ajudando a sair daquele buraco no qual se encontra. Consciente ou inconscientemente, ele tem a noção de que pode não ter outra chance, pode não receber ajuda em uma situação de desespero semelhante. Então o que ele faz para retribuir tal ajuda, ele vai difundir e espalhar a palavra de deus, como uma espécie de pagamento por aquilo que foi feito para ele. Normalmente, o rico tem outros recursos para cuidar de uma depressão, tem dinheiro para pagar um psicanalista, um psicólogo e, mesmo assim, vai a Igreja, tem sua crença.

Guyau justifica a questão da inteligência fazendo a comparação do animado e o inanimado, ou seja, daquilo que é um mero objeto e daquilo que representa muito mais que isso. Para um católico a imagem de Nossa Senhora não é apenas uma peça de gesso, é um objeto animado, tem uma significação toda especial pra ele. Se um índio, que nunca teve contato com a cultura da Igreja Católica esbarrar numa imagem da mesma santa e quebra-la, ele pode até pedir desculpa, mas não por ter quebrado tudo o que a imagem representa, e sim, por ter danificado um objeto, parecido com uma mulher. Quem conhece mais, tem mais símbolos, mais representações e, portanto, está mais suscetível a ter crenças.

Idealismo, como é difícil arrancar do homem uma ideia arraigada, ainda mais uma já consagrada por outros escritores, pelas escrituras sagradas, onde toda lei e autoridade já estão ali impostas e prontas, basta segui-las.

*Thiago Quinteiro é jornalista e filósofo