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Estou aqui para falar de mim, mas confesso não saber bem por onde começar. A minha força saiu da seguinte afirmação: o único momento em que a procura pelo tempo perdido cessa é quando o corpo se entrega a mim. Sei que a frase remete a perguntas, porém não se esqueçam que estou em todos os corpos, lugares, sou a verdadeira onipotência e onipresença de fato, concreta, prática. Aquilo que costumam chamar de ser supremo, de deus disso ou daquilo são meras invenções racionais de vocês com a intenção (in)feliz de me superarem. Por hora, não vou criticar tais tentativas movidas pelo medo que têm de si mesmos. Voltando à afirmação, curiosos como sempre demonstraram ser, farão logo perguntas: como sabe disso? Como tem esta certeza? Quando saber que o momento chegou?

Prático como disse que sou, vou ter de pedir um favor a vocês – devem imaginar se entregando a um desejo ou lembrar de um já conquistado. Certamente, irão encontrar um prazer ali revelado, um gozo, um instante de poucos segundos que não pode ser descrito, verbalizado, pois está além da linguagem, a reprodução dos gemidos pode dizer mais. E este instante do gozar cujo falar lhes escapam, este momento curto e passageiro, conseguiu escapar do tempo. Vou suspirar e respirar bem fundo porque vocês, homens de ciência, querem saber logo o que é a denominação que eu trouxe da fuga do tempo. A cada dia, estou mais convencido que quanto mais a ciência revela a vida, mais um retalho da colcha que encobre o ser é alinhavado. Tudo bem, não importa, esta é uma fala franca onde o óbvio não me incomoda. Tenho certeza que poucos dos que estão aqui me ouvindo tagarelar pararam linhas acima para realizar um desejo imediato. Quem cometeu tal ousadia não precisa mais voltar ao texto, a leitura é o escudo dos homens sem coragem. Aos medrosos, aconselho como vestimentas as armaduras, pois assim, nem o seu arrepiar é percebido pelos outros. Devo agora me explicar, mostrar como o instante que há pouco dizia ser curto e passageiro escapa do próprio tempo. Aqueles poucos segundos de duração desta satisfação do desejo alcançado podem deixar suas pernas moles por vários minutos depois; fazendo com que o instante já perdido (parte agora do passado), vez ou outra volte a mente, as pernas bambas relaxam o resto do corpoque, por sua vez, faz a consciência, alma ou espírito, transbordar novamente. Portanto, toda vez que daquele gozo lembrarem, sentirão de formas mais ou menos intensas afetos como este que acabei de descrever. A recordação pode durar dias, meses e anos, o que faz daquele gozo que um dia foi presente, uma sensação do passado, junto com os arrepios repentinos que podem ter somente com o gozo na memória. Isso quer dizer que os gozos que aconteceram também fazem parte de um futuro; sim, seus corpos irão procurar consciente ou inconscientemente por sensações semelhantes, com mais ou menos intensidade, das mais diversas formas, sempre estarão à procura. O gozo de outrora faz parte dos corpos andantes e é atemporal, mesmo vivido ainda vive, na saudade ou na busca por outro instante parecido. Eis a minha potência. Eis o que vocês fazem questão de esquecer. Sem lição de moral, sou aquele que menos deve julgar. No entanto queria dizer só um fato que me incomoda do maldito Aristóteles, este grego universalizou na sua ética algo que pode me matar: a phronesis (prudência). Uma forma de conduta para uma vida boa, onde ser feliz é conseguir manter o equilíbrio sobre o que é desejado e o que permitido ou legitimado. Desde então a sociedade foi cada vez mais reprimindo vocês e me diminuindo para se pensar num bem maior, num bem comum. A prudência abraçou o cristianismo e os prazeres individuais foram castrados e a prudência se transformou na própria razão. O homem moderno passou a ser constituído e diferenciado e cheio de glórias à medida que vai sendo cada vez mais racional. Como é difícil ser esquecido, enquanto todos procuram explicação a vida segue em vão.

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Embora esteja cada vez mais claro pra vocês, sei que muitos ainda podem perguntar: quem é você que fala pelos cotovelos? Bem, já disse que não sou um homem e que estou em todos. Sou algo que queima em vocês! Sou como a sombra de Peter Pan, estou sempre junto e, se um dia eu pensar em escapar, vocês irão querer me costurar junto aos seus corpos na mesma hora; antes eu perto que longe, podendo ser descoberto por outro qualquer. Ninguém de fato mostra o que queima no peito para outrem, nem para o amante mais sensível e nem para o amigo mais compreensivo. As chamas são como o câncer, cada um pode ter o seu que é sempre diferente do câncer do outro e melhor, não escolhe as vítimas, é o natural percorrendo os organismos, atingindo uns e outros não; a justiça não consegue me alcançar; minha velocidade ultrapassa sem dificuldade a potência de cem cavalos do exército da moral.

Eu sou o mistério!!! É chegada a hora de comentar o motivo do esquecimento de vocês de um potencializador de vida como eu. Alguém da plateia pode chegar a conclusão de que se sou mistério não poderia ser tão esquecido pelos homens quanto digo que sou, a humanidade adora mistérios. Com os inúmeros avanços tecnológicos é fácil encontrar um homem dizendo que não há mistério neste mundo que não possa ser desvendado. O enigma pode servir como um desafio para os homens, pode ser um potencializador do conhecimento, uma intenção que move uma ação. Com isso, podemos então chegar a conclusão de que o homem gosta do mistério. O problema não foi a minha afirmação, mas o entendimento que tiveram dela. Meus caros, tudo que um dia foi solucionado nunca de fato foi um mistério. O que foi descoberto aconteceu porque as evidências e o conhecimento do homem estavam ali representados. O meu conceito é diferente, o mistério é um enigma que não pode ser decifrável. É como algo que pensa em vocês, que está em vocês e que não é consciente, é indefinido, não sabem de onde vem e nem como surge e muito mesmo o que me constitui. É bobagem tentar ir atrás dos porquês e a busca é a própria fuga de mim. Entendo perfeitamente este temor, se entregar a mim é como cair, se jogar no caos, num abismo onde não se vê o fim, onde vocês podem passar dias ou anos caindo, ou para em algum lugar desconhecido em segundos. Sou a desordem cuja sociedade faz questão de correr na direção contrária; querendo sempre ordem e progresso, seguindo à risca o que foi programado no dia anterior e está registrado nas suas agendas que possuem dias, horas e até meias horas para que nada escape do seu controle. Eu não me encontro nestas programações, simplesmente apareço quando seus corpos são arrebatados por sensações produzidas pelo contato com o mundo exterior. Em alguns momentos chego às consciências, mas grande parte do dia fica escondido no inconsciente e dou risada da psicanálise que tenta me encontrar no mar de escuridão… é patético. Quer assumam ou não, os seus atos são sempre intencionados, voltados para tentar de alguma forma atender aquilo que eu desperto nos seus corpos. Todos que conseguem alcançar o que foi desejado por mim, encontram a felicidade e todos que se jogam de costas no abismo do próprio viver conseguem chegar a sensação do sublime. Também quero deixar claro que nem todo desejo e sua realização vai trazer uma consequência agradável, sou amoral, quem me seguir de fato, encontrará inúmeras resistências, sofrerá mais do que antes, não será nada tranquilo. Para aqueles poucos que me trazem a consciência com mais frequência, não me culpem por estarem nesta condição, não me culpem pela angústia pós-gozo que podem ter. Eu sou somente a chama que arde seu corpo, cabe a vocês deixarem se incendiar ou jogarem um balde de água fria. Não se privem da única liberdade que ainda possuem. Meu objetivo chega ao fim, queira comover pelo menos um ouvinte (leitor) para que, de vez em quando, sinta mais a minha presença, para que em certos e remotos instantes, ao invés de me reprimirem me banindo para o inconsciente (medroso e domesticado), me deixem sair. Ah… e quando o meu despertar trouxer sofrimento não hesitem em me esquecerem um pouco. Rapidamente as sensações de vocês me provocam a criar desejos mais críveis para substituir aquele sofrimento. Afinal, exijo muito de vocês, mas não quero destruir seus corpos, dependo deles para sobreviver. Meu único desejo, que é realmente só meu e não de seus corpos é de não fazer parte a vida toda de um tempo perdido, quero ser encontrado mais vezes por vocês. Agora sim posso me apresentar, obrigado por chegarem até aqui: eu sou a vontade!!!!

*Thiago Quinteiro é filósofo e jornalista