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Em julho de 2010 foi proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR), junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), a ADI 4439/DF, tendo por objeto um artigo da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB) e do Acordo entre o Governo do Brasil e a Santa-Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil (Acordo Brasil-Santa Sé). Ambos diplomas jurídicos estabelecem que o ensino religioso deve ser confessional, independente da religião, e de matrícula facultativa.

A PGR buscava conferir interpretação conforme a Constituição Federal para assentar, basicamente, que o ensino religioso em escolas públicas somente poderia ter natureza não confessional, ou seja, não pode pregar princípios e liturgias de uma religião específica. Ainda defendia a PGR a proibição da admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas, a fim de evitar o proselitismo. O pedido se fundamentou na laicidade do Estado consubstanciada no art. 19, I, da CF.

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Dentre os votos dos Ministros do STF se destacaram duas correntes: uma encabeçada pelo Min. Luís Roberto Barroso e outra pelo Min. Alexandre de Moraes.

A tese defendida pelo Min. Luís Roberto Barroso coaduna com o pedido da PGR, no qual o ensino religioso ministrado em escolas públicas deve ser de matrícula efetivamente facultativa e ter caráter não confessional, além de vedar admissão de professores na qualidade de representantes das religiões. Sustentou que o Estado Brasileiro não deve assumir um papel que privilegie de fato uma ou outra religião, garantindo assim a laicidade do Estado. Observa, sob um aspecto social, que o ensino religioso no Brasil atinge crianças a partir dos 6 anos de idade, portanto, se tal disciplina for ensinada a partir de um caráter confessional fará com que crianças e adolescentes que possuam uma origem religiosa diversa da ministrada se sintam desconfortáveis e excluídos do grupo social que convivem. Enfatiza que o Estado deve oferecer um ensino religioso que busque uma visão ampla sobre as inúmeras religiões, com o objetivo de promover o respeito às diversidades e evitar atos de intolerância religiosa.

No aspecto social apontado pelo Min. Luís Roberto Barroso, é importante apresentar dados que colaboram para esta observação. A UNICEF lançou uma pesquisa em 2017 na qual aponta que 43% dos estudantes brasileiros entre 11 a 12 anos afirmaram já ter sofrido bullying. Tal índice coloca o Brasil no triste patamar de 4º país do mundo com maior ocorrência desta prática, ou seja, o cenário escolar brasileiro é propício para atos de discriminação religiosa.

Por sua vez, o Min. Alexandre de Moraes partiu de um ponto de vista completamente distinto, entendeu que o Estado impondo um ensino não-confessional promove dirigismo estatal na imposição prévia de conteúdo, que significaria verdadeira censura à liberdade religiosa e desrespeito à laicidade. Fundamentou seu posicionamento em um levantamento histórico de Constituições e leis a partir da República, demonstrando que, com o Decreto nº 19.941, de 30/04/1931, e depois a Constituição de 1934 até a Constituição de 1988, sempre se defendeu o ensino religioso confessional. Afirma que a matrícula facultativa nas aulas de ensino religioso por si só evitam o proselitismo. Também assevera que a Constituição resguarda a assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva, por exemplo: os trabalhos desenvolvidos por grupos religiosos nos presídios brasileiros e a figura dos capelães nas Forças Armadas.

Neste aspecto, é importante fazer um adendo ao voto do Min. Alexandre de Moraes, pois nas forças armadas não há um oficial capelão pai-de-santo, rabino, monge etc, apenas o que se vê são representantes cristãos, sendo padres da Igreja Católica Apostólica Romana ou pastor evangélico, inclusive a Separata ao Boletim do Exército nº 45 de 9/11/18 prevê concurso público em 2019 apenas para estas confissões religiosas, sendo duas vagas para padres e uma vaga para pastor evangélico.

Ao fim do processo, em 27/09/2017, ou seja, sete anos depois, o STF entendeu, por maioria de seus membros, que o pedido da PGR era improcedente e afirmou a constitucionalidade do ensino religioso confessional com disciplina facultativa. Desta forma, a tese prevalente ao cabo da discussão fora a formulada pelo Min. Alexandre de Moraes.

No entanto, a decisão do STF caminhou na contramão de um pensamento que defenda a liberdade religiosa esculpida no art. 5º, VI, da CF, e de um dos objetivos fundamentais do Estado descrito no inciso IV do art. 3º do mesmo arcabouço jurídico que conclama a atuar na redução da discriminação, neste caso a religiosa; ainda, deixou de levar em conta estudos aprofundados sobre a laicidade no Brasil e no mundo; e não observou o posicionamento majoritário das entidades que participaram da audiência pública sobre o tema, na qual, da 31 entidades, 23 se posicionaram pela procedência do pedido formulado pela PGR, ou seja, de um ensino religioso não confessional.

A palavra laico tem sua origem etimológica no grego laikós, que significa “do povo” e depois dentro do contexto histórico fui utilizada com a ideia de secularização, que é a ruptura entre Estado e igreja.

Durante muito tempo se imaginou que o Estado não poderia ou deveria intervir nas relações religiosas, deveria assumir uma postura de neutralidade. Todavia, a relação Estado e igreja sempre foi muito próxima. Vejamos, como exemplo, os diversos grupos religiosos com representação no Congresso Nacional, assim como um dos objetos de discussão da ADI 4439 que é o Acordo Brasil-Santa Sé. Contudo, não é devido um papel de neutralidade do Estado, mas sim de mediador e defensor da pluralidade religiosa.

A laicidade em nada se converge com a ideia de negação ao sagrado, mas sim, como respeito às diversas formas de se observar o sagrado. Há inúmeros estudos que classificam tipos de laicidade, bem como formas de laicidade em diversos países. Nenhuma destas discussões se fizeram presentes, enquanto argumentação científica, nos votos dos Ministros da Suprema Corte.

O STF deixou de dar um importante passo no sentido de combater a intolerância religiosa tão presente na sociedade brasileira contemporânea e de afirmar o caráter laico do Estado. Deixou de se tornar um norte no respeito à liberdade religiosa e fez apenas transparecer ideias conservadoras. Deixou de considerar os apontamentos dos amicus curies para buscar fundamentos em convicções pessoais.

*Davison Cardoso é advogado