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Para muitos, estamos vivendo uma nova era política brasileira, mas será que este momento bolsonariano é mesmo algo novo? Jair Bolsonaro não foi eleito por ser um político atuante no Congresso. Sua postura e forma de agir parecem mais a conduta de um líder religioso. Seu discurso sempre tem como base a defesa da família e a segurança e estes não são conceitos de hoje. Será que a família se perdeu e a violência está maior que a realizada ontem, aquela que já preocupava ao final do século XX? Certamente não.

Para entender o porquê de um governo assim é melhor analisar os eleitores, ou seja, os brasileiros. Nas eleições de 2018 foi nítida a polarização, os defensores de um comunismo (apresentado pelo PT) e um conservadorismo de outro lado. O fermento desta mistura foi ao forno e teve o ódio como resultado. Na história das grandes civilizações, de países, o ódio impulsionou guerras, já devastou cidades e dizimou populações. O ódio é uma sensação que, segundo o filósofo Baruch Espinosa, diminui a potência do existir. O ódio está sempre impulsionando rebeliões e mudanças drásticas ou não em governos, em sistemas políticos. Com os casos de corrupção desmantelados pela Polícia Federal dentro do Partido dos Trabalhadores (PT), esta afecção chamada ódio passou a ter nome e endereço já definidos. Calma, antes de abordar a queda da esquerda, fato que vem acontecendo em muitos países mundo afora, é bom entender a sua ascensão.

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Maio de 1945 ou setembro deste ano, o importante é saber que teve fim a Segunda Guerra Mundial. Neste período a humanidade passou a se preocupar mais com uma harmonia, uma paz duradoura ente os povos, entre as nações. As grandes potências começaram a se reestruturar. Meados da década de 1960 e já era nítido o salto no desenvolvimento econômico daqueles que, até pouco tempo, pensavam tão somente em permanecerem de pé. Outra data relevante, 1968, ano marcado por diversas manifestações pelo mundo. No Brasil, teve a marcha dos 100 mil. Para Giles Deleuze, filósofo que participou da manifestação de maio de 68 na França, um período em que as pessoas perceberam a importância de lutar pelos seus desejos e de como a luta de um pode ser a de todos. A consequência do ano de 1968 deu força para a ascensão do bem-estar-dos-direitos-individuais, de tudo que é humano. Com isso, a política de esquerda, com ideologia voltada ao bem comum, passou a ter cada vez mais força. Pouco depois, em 1989, cai o muro de Berlim, o mundo dos intelectuais é quase todo comunista, de esquerda. Resultado não demora a chegar na política, na década de 1990 políticos com base no bem comum começam a assumir o poder em diversos países. No Brasil europeizado a onda da esquerda chega no início do século XXI, Lula, o grande líder do PT, assume o poder em 2003. A prosperidade econômica ajudou a esquerda no Brasil a avançar, para tentar diminuir a diferença ou distância entre as classes, entre os operários e os burgueses. Direitos Humanos, Constituição Federal, governos de esquerda ajudam a promover um Estado capaz de trazer a felicidade para os povos. O problema é que esta ideologia tem um custo, pois não é um Estado que pode salvar, não há um índice de felicidade bruta para contabilizar dentro de um plano econômico de qualquer governo. Pouco mais de trinta anos de ideologias visando a preocupação com o outro foram mais que suficientes para a população acreditar que o Estado do bem-comum é realmente o governo ideal. Resumindo: tempos de um romance shakespaeriano entre o povo e a política de esquerda, uma relação que foi contaminando países da Europa e América do Sul. Fato é que para executar políticas públicas na tentativa de diminuir a diferença entre as classes, com projetos de habitação, expansão de créditos na educação, assistência direta com ajuda de custo aos mais necessitados, tudo tem sempre um preço, o governo gasta mais dinheiro para manter estes projetos. Eis que ao final da primeira década do século XXI ocorreu uma crise econômica, inicialmente nos Estados Unidos, que acabou refletindo na Europa e, posteriormente, no Brasil. E como o ódio é sempre importante motivador para a ascensão de regimes totalitários e/ou teocráticos, o sistema capitalista não demorou para achar os seus respectivos culpados. Na Europa, no início desta década, França, Espanha, Itália, Grécia e outros países importantes começaram a sofrer com fortes crises econômicas. No Velho Continente o culpado foi identificado rapidamente, os imigrantes. Basta lembrar do atentado na Noruega, no dia 22 de julho de 2011, num acampamento de verão na ilha Utoya. Na ocasião, 68 jovens, membros do Partido Trabalhista Norueguês, foram assassinados pro um homem de 32 anos, nacionalista e de extrema direita. Os europeus foram convencidos de que os estrangeiros tinham um custo muito alto para suas nações. Para quem não acredita, é só ler uma página do jornal espanhol ‘El País’ para entender melhor. A xenofobia passou a ser defendida de forma mais intensa pelos políticos de direita e mais violenta pelo cidadão comum. Construiu-se um ódio ao imigrante e ao pobre de uma em geral, não dá para aceitar, por aquele que tem propriedade, perder um pouco do seu conforto em detrimento àqueles menos favorecidos. O atirador de Utoya deixou um bilhete: “Quando o multiculturalismo deixará de ser uma ideologia criada para destruir a cultura europeia, as tradições e a identidade do Estado-nação?” Pergunta que traz o supra sumo do fundamentalismo europeu.

Tempos depois, a crise econômica chega ao Brasil e já se mostra, não como uma marola, mas como uma tempestade, capaz de acabar com os mais fracos. Época do governo da Dilma Roussef, no seu segundo mandato. O sistema capitalista dá vários sinais ao seu governo. O pouco sangue tirado das grandes corporações só aconteceu como troca de favores, havia uma conciliação não de classes, mas entre o governo e os detentores do poder, que teve início no governo Lula. As grandes empresas ganharam milhões, enquanto a população, os menos favorecidos ganhavam migalhas que atenderam estes carcomidos muito bem. Através de projetos sociais o Brasil, segundo dados da ONU, sai da miséria. Para Dilma não eram os mesmos tempos. A presidente sustentou a ideia de não deixar a crise afetar de forma mais direta e avassaladora a classe média, com o pensamento de que assim a economia iria continuar girando. O problema foi que esta estratégia começou a irritar o sistema. Para as grandes corporações já era hora de receber uma ajuda mais direta do governo, assim como os Estados Unidos fizeram com seus bancos em 2008, na crise imobiliária de lá. Dilma se recusou a mudar de estratégia e no poder público é assim, se você ajuda de um lado tem de tirar de outro, não há recursos e nem dinheiro para agradar a todos. É justamente por isso que a política é importante, é o ente político que vai realizar as escolhas, que vai apontar as preferências do seu governo, esperando que a sua decisão seja aquela que mais tem agradado a população. Dilma, ao escolher priorizar suas políticas públicas, mostrou que iria favorecer e ficar do lado dos mais pobres. Foi neste momento que ela entregou a corda aos seus inimigos políticos, a mesma corda que serviria para enforcá-la em praça pública, neste caso, no Congresso. Não bastava tirar a Dilma do cargo, as políticas públicas e nome de Lula ainda estavam arraigados em grande parte da população, muitos foram beneficiados com esses projetos. Quem consegue uma casa própria pelo Minha Casa Minha Vida, após ficar vinte anos pagando aluguel, não esquece o nome do seu salvador. Providencialmente ou não, a Operação Lava-Jato chegou, desmantelando um grande esquema de corrução nos 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Agora já estava mais fácil disseminar o ódio pelo PT. O slogan do “rouba, mas faz” do malufismo não serve para o partido que sempre combateu a corrupção. Pouco a pouco, a cada fase da Lava-Jato, o prestígio do PT descia um pouco mais a ladeira. O ápice foi a prisão de Lula, foi como prender ou condenar o próprio partido. Foi o fim do Estado do bem-estar social no Brasil. Rapidamente a população se viu numa crise de identidade, era como se a sociedade tivesse perdido seus valores. A esquerda ética foi capaz de realizar um grande esquema envolvendo o desvio de milhões da empresa de maior prestígio (a Petrobras) e se mostrou ineficiente no auxílio às necessidades básicas da população em tempos de crise, como oferecer boa assistência na saúde, educação e de ampliar seus projetos sociais com qualidade. Daí, para propagar o anti-petismo ficou muito fácil.

*Esta é a primeira parte do artigo que foi fruto de três aulas de Sociologia dadas em outubro de 2018 no Colégio Nini Mourão. 

**Thiago Quinteiro é jornalista e filósofo.