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Encerrando este ciclo de ensaios e crônicas, tive que escolher entre diversos temas que mereceriam uma reflexão neste último texto. Assuntos não faltam. Pelo que já se viu nesses dois meses de novo governo, os próximos quatro anos serão recheados de polêmicas variadas, em todos os escalões. Todas trágicas, algumas cômicas. E para encerrar, quero falar de um assunto recorrente, mas que merece atenção: a posse de armas e a violência.

Os fatídicos acontecimentos na cidade mineira de Brumadinho eclipsaram as discussões em torno da flexibilização da posse de armas promovida pela nova administração federal, logo no primeiro mês de governo. E com toda razão, em virtude da magnitude da tragédia que atingiu o município da região central do Estado. Mas este fato não pode cancelar o debate sobre as armas, fato grandemente relevante para toda a população.

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Os números da violência no Brasil são dignos de uma guerra civil. Isto pode ser confirmado pelo levantamento divulgado em agosto do ano passado no Atlas da Violência 2018, publicado pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA). A pesquisa

revela que nos últimos onze anos o país teve 553 mil assassinatos. Essa quantia supera, por exemplo, o total de mortos na guerra da Síria, estimado em cerca de 500 mil vítimas.

O mesmo levantamento mostra que o ano de 2016 foi o mais violento por aqui, com 62.517 homicídios, ou seja, 30,3 mortes por 100 mil habitantes. Taxa que supera em trinta vezes o número de homicídios da Europa. Dentre as vítimas, ainda segundo a publicação do IPEA, os jovens de 15 a 29 anos são as mais numerosas, num total de 324.967 pessoas.

Outro dado importante, divulgado na época, traz um retrato revelador da discriminação racial no país. Essa informação diz que 71,5 % das pessoas assassinadas eram negras e pardas. Mas, em vista do momento especial que o país vive, com a liberação da posse de armas de fogo pelo governo federal, o dado mais importante do levantamento é sobre o número de assassinatos por esse tipo de armamento.

Esse número se mantém em 71,66 % desde 2003, representando uma maioria sonora e absoluta. A título de comparação, em 1980 eles eram cerca de 40% do total. Isso mostra bem a evolução das mortes provocadas por armas de fogo, números que podem crescer ainda mais rápido nos próximos anos.

Isto porque o presidente da república, usando de suas atribuições, implementou uma das suas principais promessas de campanha: a liberação da posse de armas para o cidadão comum que comprovar essa necessidade. Os detalhes foram exaustivamente comentados na imprensa em geral, carecendo de explicações complementares.

Nada mais natural para um representante da caserna que ocupa o principal cargo político do país.  Na sua mente, vislumbradas através da ótica militar, as questões de segurança da população se resolvem com uma arma na mão.

Poderia desfiar aqui uma série de implicações que podem ser incentivadas por essa atitude, inclusive o aumento vertiginoso do número de feminícídios, mas todas também já foram devidamente exploradas pela imprensa, redundando sempre no possível aumento geral dos índices de violência. Mas o que eu considero ainda mais importante é o que está oculto nessa atitude.

Primeiro, fica evidente que esta não é uma medida contra a violência, mas sim a favor. O que também se depreende   dessa ação é que o governo espera que o cidadão trate da sua própria segurança. Em outras palavras, que o povo se vire.  Isto é mais fácil do que atacar as verdadeiras causas da violência.

Elas são múltiplas, mas bem conhecidas. Passam pelas principais carências da população mais pobre que, de acordo com os números apresentados, protagoniza o levantamento divulgado pelo IPEA. Só pra se ter uma ideia, calcula-se que cerca de três milhões e quinhentas mil crianças e adolescentes estejam fora da escola em todo o país. Todos são, sem exceção, pobres e candidatíssimos à delinquência.

A educação, abrangente e de qualidade, seria um dos remédios mais eficazes contra a disseminação da violência. Outra causa, que caminha lado a lado com a anterior, é a péssima distribuição de renda. Que, de acordo com as novas regras sugeridas pela reforma da previdência, tende a piorar nos próximos anos.

Enfim, a promoção da posse de armas equivale a uma declaração de guerra interna. Mas uma declaração de guerra equivocada, baseada em pensamentos simplórios e mais violentos ainda. É como convidar a população a se armar para uma guerra civil, uma contenda fratricida, promovia por sádicos. Em todas as guerras os dois lados perdem. Mas aqui no Brasil, um lado vem perdendo de lavada há tempos: os pobres.

E tudo indica que nada vai mudar no futuro imediato.

Obs.: Os dados da pesquisa citada estão disponíveis em: www.forumseguranca.org.br/publicacoes/atlas-da-violencia-2018/

*José Nário é escritor, engenheiro florestal, especialista em Informática na Educação e Gestão Ambiental e autor dos livros “Lelezinho, o pintinho que ciscava pra frente e andava pra trás”, “Lelezinho vai à escola” e “Minha janela para o nascente”.