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Uma profusão imensa de super heróis invade as telas dos cinemas na atualidade. Novos e antigos protagonistas transportam suas ações espetaculares dos gibis para as fabulosas telas das super modernas salas de projeção. A pancadaria típica das HQs assume um nível de realidade impressionante, quando não, estonteante. As aventuras permeiam desde os subterrâneos da Terra até as vastidões do espaço sideral, de forma cada vez mais alucinante. 

Isso me fez lembrar da minha carreira no cinema. No cinema da minha cidade, é claro.  

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Teria sido uma carreira muito interessante, com certeza, porém não chegou a ter início. Era só um desejo, uma vontade de adolescente que muitos outros jovens do meu tempo acalentaram. Esclarecendo: era simplesmente o desejo de ser projecionista, ou operador do antigo e problemático projetor do cinema da minha pequena cidade. E esse anseio tinha um objetivo claro e intenso: assistir a todos os filmes projetados ali. 

O prédio do cinema era um espaço assim meio sagrado, místico, como um templo. Parecia até que os heróis daqueles tempos moravam ali, em carne e osso, vivinhos da silva, prontos para encarar qualquer aventura. Quando adentrávamos aquele ambiente, antes do início da sessão, tínhamos a sensação de que eles iriam surgir a qualquer tempo por detrás da tela e se exibir ao vivo. 

Vê-los nas telas, durante a exibição dos respectivos filmes, não era suficiente para sanar nossa curiosidade de adolescentes. Eu, particularmente, queria compartilhar com eles o seu cotidiano, suas vidas particulares, seus momentos de lazer, suas alegrias e tristezas. 

Para ter esse privilégio, conviver por muitas horas com os super heróis, o jeito mais fácil era virar projecionista. Mas o cinema já tinha o Plínio, funcionário cuidadoso e extremamente dedicado ao cargo. Além de ser muito jovem, longe da aposentadoria. O jeito então foi agradá-lo para ser aprendiz de projecionista. O cinema só tinha um projetor. O encarregado da projeção tinha que ser rápido na hora de trocar os rolos de filme, quando havia um intervalo na exibição. Nada melhor do que ter um ajudante para essas tarefas, não é mesmo? 

Não! Nada disso! Ele não queria e nem precisava de um ajudante. Deixava que a gente ficasse por ali antes de começar a sessão, a observá-lo nos preparativos absolutamente necessários antes de rodar a fita. Até nos presenteava com alguns fotogramas retirados do filme e cartazes alusivos. Eu tinha uma pequena coleção deles, dos cartazes. Confesso que alguns foram surrupiados furtivamente.  

Já que não podia conviver continuamente com meus heróis ali na sua moradia, eu então os levava para casa e os pregava nas paredes do meu quarto, que tinham quase quatro metros de altura, na velha casa construída lá pelo início da terceira década do século vinte.  

Não sei dizer qual é a relação dos jovens de hoje com o cinema. Sobraram poucas salas de exibição pelo interior do país. Mesmo nas grandes cidades, muitos cinemas foram fechados e as salas se concentraram nos shopping centers, aproveitando a afluência de público marcadamente jovem e de poder aquisitivo mais elevado. 

Aquele frisson que acompanhava o lançamento dos filmes dos heróis mais populares não existe mais. Antes eles eram precedidos de meses, por vezes anos, de espera, criando uma grande expectativa. Hoje em dia eles são exibidos quase que concomitantemente aos grandes centros, esvaziando muito daquela expectativa que levava a filas quilométricas na estreia.  

Os projetores analógicos também se modernizaram, deixando de apresentar os problemas antigos. Muitos desses artefatos são de última geração, com projeção digital. Uma caixa quadrada, comandada por um display eletrônico. Dessa forma, muito daquele encanto antigo também se foi. Os mistérios daquelas máquinas barulhentas e cheias de engrenagens, com duas imensas rodas suspensas, onde o celuloide – com as imagens de cabeça pra baixo – se desenrolava embaixo e se enrolava em cima (ou seria o contrário?), já quase não existem mais.  

Hoje em dia é muito mais simples e eficiente a projeção de um filme, sem um mínimo de glamour. Creio que a juventude atual jamais se inclinaria para uma atividade desse tipo, assim como aconteceu comigo. Enfim, minha carreira no cinema nem chegou a começar.  

A sala de projeção da minha cidade, da mesma forma que ocorreu em centenas de outras pequenas localidades, fechou definitivamente as portas lá pelo final dos anos setenta. E minha pretensão de virar um profissional do cinema foi sepultada com ela.

*José Nário é escritor, engenheiro florestal, especialista em Informática na Educação e Gestão Ambiental e autor dos livros “Lelezinho, o pintinho que ciscava pra frente e andava pra trás”, “Lelezinho vai à escola” e “Minha janela para o nascente”.