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Poços de Caldas

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SERV-SELVICI

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A placa torta, presa pouco acima da soleira da porta, indicava a localização do único restaurante do lugarejo: “restoranti serv-selvici”. O letreiro, escrito à mão com tinta branca sobre o fundo de madeira, já se apresentava meio apagado, denunciando que já fazia tempo que o seu autor teria tentado passar uma mensagem para consolar os estômagos aflitos como o meu.

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Eu entrei na suposta casa de refeições e, logo que meus olhos se acostumaram com a penumbra vigente no interior, avistei de frente um balcão rústico, ensebado e antigo. Duas pequenas mesas de madeira, com duas cadeiras cada, todas também rústicas, ensebadas e antigas, compunham as acomodações para os pretendentes a uma refeição.

Cortando caminho por uma poeirenta estrada de terra, na famosa Serra da Canastra, havia deparado com aquele lugarejo. Perdido nas dobras da serra, não tinha mais do que umas vinte casas, com a maioria delas parecendo desabitada. As paredes de grande parte delas estava coberta de poeira e com as marcas do tempo.

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Os terrenos circundantes não apresentavam nenhum tipo de cerca ou tapume para delimitá-los. Em alguns deles, animais pastavam placidamente. Cavalos e vacas com seus filhotes se alimentavam no capim alto e viçoso que brotava do chão. Cabras saltitavam alegremente, como lhes é peculiar.

Quando entrei, não havia ninguém no interior do comércio. Resolvi aguardar, porque não havia outra opção de alimentação na localidade. Estava rodando já há duas horas e, momentos antes, concluíra que estava perdido. Havia chegado a uma bifurcação com mais três opções de estradas e, ao escolher uma delas, poucos quilômetros depois me deparara com o arraial.

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As estradas da redondeza eram uma sucessão interminável de sobe e desce, com paisagens excepcionais e raros sinais de civilização. Poucas casas, brancas e encarapitadas em colinas ao longe, reluziam ao sol da tarde. Não encontrava ninguém para obter informações e o relógio do carro já marcava quase quinze horas.

Aquele arraial foi, na verdade, uma grata surpresa. Surgiu do nada, sem nenhuma placa, por menor que fosse, para anunciá-lo. Os sinais de urbanização eram mínimos e quase apagados. Ruas de terra invadidas pelo mato e capim alto tomando conta das quadras. Nenhuma pessoa à vista.

Comecei a duvidar que houvesse alguém ali no “restoranti”. Já olhava para a porta, desanimadamente, pensando em seguir viagem, quando ouvi um barulho do lado de dentro do balcão ensebado. Parecia que alguém estava bocejando. Me aproximei e olhei por cima da velha peça de madeira.

Deitado no chão, sobre um pelego de lã de carneiro, um senhor já idoso parecia ter acordado naquela hora e ainda se espreguiçava. Quando me viu olhando por cima do balcão, esboçou um sorriso. Ao mesmo tempo em que se sentava, com um gemido meio surdo, ele disse, no jargão típico da zona rural:

– Taaaaaaarde…

Raspou a garganta de fumante e se pôs de pé. Eu, meio sem jeito por, aparentemente, ter interrompido a sesta do velho senhor, respondi:

– Boa tarde. Tudo bem com o senhor? Meu nome é Zé…

Ele balançou a cabeça afirmativamente e me estendeu a mão, dizendo:

– Us ôtro mi chama di Chico…

Eu, entusiasticamente, como fazemos por aqui, agarrei a sua mão e a apertei. Ele pareceu assustado. Não fez nenhuma menção de apertar a minha mão e tentava resgatar a sua, que estava firmemente presa entre meus dedos.

Quando percebi que estava cometendo uma gafe, já que os moradores da área rural geralmente não apertam as mãos alheias e mal as tocam quando cumprimentam, soltei a mão dele e fiquei sorrindo tolamente.

Passado aquele momento de embaraço, eu falei:

– Desculpe, Seo Chico…

– Discurpá o quê?

– Não, nada… É que eu vi uma placa aí fora. Diz que aqui é um restaurante…

– E é mêmo! Servselvice, inda pur cima!

– Sei… Mas, como funciona?

– Uai, o sinhô pedi e nós servselciceia já!

Enquanto eu pensava sobre o que significava aquilo, ele se virou e disse:

– Vô chamá a muié pra vê o qui qui sobrô lá dentro… Ela tamém gosta di tirá u’a pestana adispôis du armoço.

E sumiu por uma porta que havia no fundo do cômodo. Demorou bastante. Enquanto isso, fiquei a imaginar o que realmente queria dizer o “servselfice” da placa. Provavelmente o autor da inscrição, que certamente não era o velho, havia visto uma expressão parecida escrita em outro restaurante e tentara reproduzi-la ali, sem nem sequer imaginar o verdadeiro significado.

Depois de uns vinte minutos, eu ainda estava a pensar no “Servselvice” e na minha situação de faminto, perdido nos confins da Serra da Canastra. Foi quando o velho reapareceu e disse:

– A véia demorô pra acordá. Tem um sono pesadu, sô… Óia, a muié falô qui tem uns pedaço di frangu carpira, arrois, fejão, côvi e angú. Si serví…

Mais que depressa, atendendo a um imenso clamor do meu pobre estômago, eu disse:

– Serve, sim. Claro que serve! Pode trazer!

O velho abriu seu sorriso desdentado e falou entusiasmado:

– O sinhô vai gostá, as bicha inté fica varossada quando senti o chêro da cumida da véia.

– Bicha? Que bicha?

– As lumbriga…

– Ah, bom! Pensei que o senhor estava insinuando alguma coisa…

– U quê?

– Nada, não! Nada, não!

Mais meia hora de espera para eu saborear aquele que foi certamente um dos melhores almoços da minha vida. Quando terminei, Seo Chico olhava pra mim com um certo espanto. Mas logo disse, com um sorriso satisfeito:

– Uai, o sinhô gostô mêmo, ein? Inté raspô o pratu! Mais si quisé inda tem um pedacinho di quêju cum goiabada pra adoçá a boca.

Eu também sorri, meio sem graça. Mas aceitei a sobremesa. O estômago, já lotado, quase explodiu. Eu permaneci sentado por alguns minutos, sentindo aquele cansaço muito comum quando a gente come muito. Principalmente quando se come além do normal e fora de hora. O velho logo percebeu que eu estava meio mole e disse:

– Si quisé tirá u’a pestana no pelego inhanti di siguí viaje, eu impresto. É só ponhá ele dibai da árvi, ali fora, na sombra…

Como a tarde já estava perdida para minha atividade comercial, eu aceitei.  Dormi por quase uma hora sob a sombra da árvore. Depois de obter informações mais precisas sobre as estradas, segui viagem.

*José Nário é escritor, engenheiro florestal, especialista em Informática na Educação, Gestão Ambiental e Educação Inclusiva e autor dos livros “Lelezinho, o pintinho que ciscava pra frente e andava pra trás”, “Lelezinho vai à escola” e “Minha janela para o nascente”. 

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