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Poços de Caldas

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Desde quando você é fraca?

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Desde o dia em que percebi que dizer que somos fortes é encapar a mulher com um elogio falso, que no fundo quer dizer algo do tipo: aguente tudo. Porque você é mulher. Na verdade não estamos nos referindo a mulheres capazes de superar perdas, e ultrapassar barreiras, de romper desafios, somente. Estamos é tratando de jogar a mulher num labirinto de situações limites, justificando com a tal força os motivos para que aceitemos todas essas imposições como nossas, naturalmente. Você é forte, tem que levar esse casamento até o fim! Você é forte, vai cuidar do filho doente sozinha, porque homem, sabe como é, né? Vai viajar, ao invés de ficar com a família? Vai mesmo trabalhar e estudar, “no lugar” de se casar? Mas que egoísmo, não ter filhos! Ser forte não é adjetivo, é desculpa esfarrapada para que a mulher assuma sozinha atributos sociais de inferiorização e de dedicação exclusiva ao outro! Através da chantagem pela culpa. Se não faz, não é boa o suficiente, é mal vista, não presta! São objetos os que carregam estas características: valer, prestar, servir. No entanto, eles nos são atribuídos desde sempre. Como às coisas.

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A mulher é tida então como um bicho forte. Digo bicho mesmo porque, em geral, essas definições estão ligadas às dores que suportamos até o limite, aos danos emocionais a que somos expostas desde crianças e que, ou aprendemos a lidar ou morremos no meio do caminho, à violência, ao cansaço, à tripla jornada de trabalho. A gente aguenta tudo. Pai alcoólatra abusador, marido violento, abandono, criação dos filhos sozinhas, trabalho da casa e fora da casa, manutenção da família unida a qualquer custo, velhice dolorosa, perda da beleza exigida às custas de nosso couro. Gravidez, amamentação, culpa.

A culpa! Ela sim tem sido o mecanismo de manutenção de tanta “força” atribuída à mulher brasileira. Aguentamos a dor chantageadas pela culpa, mas carregamos a culpa de qualquer forma. A educação desse menino que a mãe não fez direito, a mãe que deixou com o pai, essa é a maior culpada! A que amamentou e sofreu, a que não amamentou e ganhou status de desnaturada. A que não teve filhos, a culpada de negar sua natureza. A que foi estuprada e era culpa da roupa, do cabelo, do rímel que aparecia na burca! A que apanhou, a culpa é dela que se apaixonou por um vagabundo, porque não deixou o marido, porque se envolve com qualquer um! Todas somos culpadas de tudo, do que fazemos e do que deixamos de fazer. De transar muito e ser vadia, de não transar nada e, vai que ele procura outra! De transar com vários e não valer nada, de transar com nenhum e ser encalhada. De ser liberada demais na cama, de ser travada demais na cama, de não querer ir pra cama. Ser fria, ser quente, ser sem graça.

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E o que resta nesse cenário todo é que, tudo dependendo de nós, nós é que terminamos por nos tornar dependentes. A dependência emocional porque não temos vida própria. Se somos ensinadas a viver para a casa e o casamento, o que fazer sem eles? Se é a mulher a responsável por manter o casamento vivo, como largar de um homem violento? Chamamos isso de amor. Dependência financeira porque não nos incentivam à carreira e ao estudo como parte primordial da vida, não nos ensinam que precisamos nos manter financeiramente sozinhas, ainda hoje! Socialmente, os salários das mulheres, ainda que mais especializadas, são em média trinta por cento menores que os dos homens nas mesmas profissões. Aí é que nos tornamos as fortes frágeis. Socialmente fragilizadas, em situação de desvantagem em diversos aspectos é que continuamos condenadas à violência e à marginalização. Obrigadas a reivindicar vulnerabilidade social porque apanhamos, mas sendo fortes porque, mesmo apanhando, temos que continuar a viver.

Lendo, tempos atrás, um livro relato sobre a ditadura chilena, lembro-me da jovem militante que foi estuprada repetidamente na prisão política, e que por muito tempo se entregou à morte na cadeia.  Essa mulher, pra conseguir sair viva dali, só conseguia pensar que muitas outras passavam pelo mesmo e seguiam a vida, e chegou a um ponto em que eu mesma e muitas de nós já chegamos, o de não se permitir viver dores, de se tapar a própria boca aos gritos de desespero. Não temos permissão para chorar. Somos fortes, ou morremos no meio do caminho. Como se obrigassem-nos a olhar com um tapo para a vida, só para a frente, só para o que temos a fazer. Seguir, seguir, seguir. Sem sentir.

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Acontece que o resultado desse olhar não é a força, mas a casca que nos impede de sentir. Não vivenciar a dor no tempo que é o tempo de doer impede que as feridas se fechem. Simplesmente seguir andando depois de uma queda, sem curar os machucados, não faz de ninguém mais forte, faz sim com que as cicatrizes se prolonguem, a dor seja sufocada e apareça em ocasiões em que já deveriam ter sido curadas. Ser mulher tem envolvido seguir andando independente do que aconteça no caminho e, machucadas como somos na vida, as feridas eternamente abertas sob a capa/cobrança de força nos impedem de sentir também o que é bom. Daí os impedimentos de vivenciar o amor! Os fechamentos às paixões da vida, ao colorido dos dias, a impossibilidade de toque, a artificialidade do sexo. O desafio da militância em defesa da mulher é que ela é impulsionada pelo ódio a toda violência que vivemos e é impossível que isso não nos atinja pessoalmente. A violência vivenciada por todas passa a ser também sentida por todas nós.

Temos produzido uma sociedade incapaz de se tocar amorosamente, onde o sexo é instrumento de controle e poder. E não estou falando em abusos somente, falo sobre vivência sexual e o quanto ela é regulada para manter a sociedade patriarcal machista. Nós vivemos em um modelo no qual aprendemos a transar com os estereótipos midiáticos, com as conversas já preconceituosas que ouvimos desde cedo, com a internet e não com a descoberta dos corpos e do prazer, que não é livre, sobretudo para a mulher. O sexo é baseado em arquétipos que têm relação com “tipos” determinados de mulheres e a preocupação física, estética e comportamental supera e muito a vinculação e a experiência afetiva do toque.

Essa construção da mulher forte, mas fragilizada socialmente, e ainda alienada de seu próprio prazer * compõe a engrenagem em que gira o amor romântico, falido, mas exaltado, violento, machista, condicionante, opressor. Um tipo de amor que precisa da carência afetiva como pressuposto da relação, já que os seres não seriam completos em si, necessitando do outro para realização pessoal. Nessa relação não cabe companheirismo porque ela sempre será desnivelada, e onde há desnível, como amar? O que temos chamado de amor, afinal?

Claramente, os tensionamentos sobre todas estas questões estão crescendo e as vivências afetivas se multiplicando na sociedade atual. Os lugares destinados à mulher estão sendo cada vez mais recusados e as estruturas familiares não se adaptam mais completamente aos pressupostos nucleares, o que talvez nos indique alguma possibilidade de futuro menos trágico para nós, mulheres. Mas é na questão da recusa à força pela culpa que ainda nos ronda, que há necessidade urgente de se desmontar, arruinando com ela a fragilidade social a que somos submetidas e nos construindo como pessoas e não como seres condicionados ao outro. Quanto mais esse processo evolui, mais possível será o encontro com os amores que nos impulsionam, ao invés de restringir, com o sexo que nos proporcione prazer e descoberta, aceitação e beleza no toque afetivo, sem sair da cama com a sensação de um teste de aprovação e classificação dos corpos e comportamentos.

Não há como vivenciar relações profundas e querer bem quando se parte de pressupostos hierárquicos, com base em incompletudes, procurando no outro o que ele nunca irá nos dar, um pedaço de nós mesmos.

Não desejo nem a força que condena à escravidão e nem a fraqueza da vulnerabilidade que somos obrigadas a assumir em razão da violência, embora saiba que precisaremos da segunda, ainda por muito tempo. Assumir força e fraqueza, nesses termos, pode significar aniquilar a sensibilidade, a capacidade de amar, de ceder, de se admitir frágil com as situações da vida, chorar e sorrir. É dessa “força” desumanizadora que precisamos nos despir, dessa armadura toda que precisamos para lutar, mas que não pode nos impedir de sentir.

* Joan Scot trata da alienação da sexualidade da mulher, utilizando-se do conceito marxista de trabalho, quando o que mais nos pertence nos é alienado, no texto “Gênero, uma categoria útil de análise histórica.”

*Andréa Benetti é pedagoga, formada na Puc Minas pelo ProUni, mestranda em Educação pela Unifal, pesquisadora de gêneros e juventude, e conselheira tutelar em Poços de Caldas, regiões sul/oeste.

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