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O aprisionamento da “beleza” feminina

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Eu também já fiz isso, exatamente assim. Era sábado e eu, praticamente com roupa de dormir e gorro cor-de-rosa, estava sentada em uma hamburgueria retrô da cidade. Sem maquiagem nem nada. Resolvemos no meio do caminho que iríamos comer hambúrguer. Desarrumada eu estava, fui assim. E minhas irmãs, se estão lendo esse texto, vão passar a sentir vergonha alheia porque sabem que o meu “desarrumada” é nível alto.

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No local, lindo, à meia luz, com decoração e música anos 80, comecei a olhar as moças ao meu lado. Todas lindas. E a pensar como eu tenho coragem de sair de casa e me sentar em algum lugar pra comer da forma como eu estava. Nem passou pela minha cabeça, no entanto, me sentir mal.

Comecei a me lembrar, então, de uma época em que jamais sairia na rua daquele jeito, ainda mais com um homem ao meu lado. E refleti bastante sobre um texto que li recentemente em que a autora descreve brilhantemente a “arrumação” feminina quando é em razão do homem e passei a pensar nos significados e reflexos reais que isso traz à nossa noção de mulher e de beleza. Aviso que não estou criticando que ninguém saia de casa arrumada, linda e com roupa escolhida. Todas nós fazemos isso, inclusive eu, agora já com um tanto de preguiça, mas ainda faço quando tenho vontade.

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O fato é que pensei muito no auge da minha adolescência até os vinte e poucos anos, quando meu salário ruim de comércio servia para garantir minhas roupas, sapatos, maquiagem e cabelos de final de semana. Para sair com quem eu estivesse namorando. E tudo era meticulosamente pensado e medido e combinado e levava tempo. Não saia sem salto, sem fazer escova no meu cabelo que é cacheadíssimo e que era enorme, sem maquiagem nem pensar. Depilação era algo que não se cogitava negociar. Pensava que todo esse arranjo estético era o que me garantia bonita e digna de ser amada, ou de ser namorada do cara “foda” que eu namorava na época. A lingerie impecável era algo para o qual ele mal olhava. Sem contar o temperamento fleumático do moço em questão, que atualmente seria alguém de quem eu nem chegaria perto, o que conta nessa história é que ela segue sendo a da maioria de nós mulheres. Associamos uma construção estética detalhada à atração ou à permanência de alguém ao nosso lado. E essa associação é falsa, midiática e escravizadora. Mulheres lindas são violentadas, mulheres arrumadíssimas são traídas e culpabilizadas, mulheres perfeitas se sentem feias. Quando diz respeito à mulher, a estética é, inclusive, higienista. Nenhum cheiro humano é admitido, nenhum pelo, nenhum gosto de corpo.

O problema todo é que a vivência no meio de homens, na maioria das vezes, reforça bastante tudo isso. Já ouvi de um homem que a mulher dele não iria trabalhar para que estivesse cheirosa lhe esperando no fim do dia. Já ouvi de outro que a namorada dele não sairia de casa com ele de “roupa esportiva”. Que a mulher dormia de calcinha velha e que estava cansada por causa do bebê pequeno. “Minha mulher tem que estar sempre linda”. A experiência de mulher pra mim, na adolescência, era de um ser quase ornamental e que servia para desfilar no carro dos namorados babacas no final de semana das cidades pequenas. E o pior é que eu nem me achava bonita e nem dirigia, dirigir era algo raro pras mulheres da minha idade, na época.

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Se a vivência com homens reforça o cenário, com a maioria das mulheres é de adoecer o espírito. Natural, já que interiorizamos tudo isso desde muito pequenas e as Instituições dão conta de reforçar. Mas é inegável que, entre mulheres, o pressuposto da “arrumação para o homem” é forte e ainda se soma ao caráter de disputa imposto pela sociedade. Minha tia teve um ataque quando eu e meu primo combinamos de ficar um dia sem tomar banho, já que eu era menina e não podia ser porca. Ele podia. Uma série de mulheres muito bem intencionadas me ensinaram (tentaram em vão, na verdade) a me vestir, sentar, conversar, pentear, dormir e me comportar. Não funcionou por muito tempo.

E pelo decorrer da vida toda não irão nos ensinar a deixar de querer ser objeto. Incentivar que a mulher estude até os níveis superiores de ensino? Viaje? Fale outras línguas? Seja independente e more sozinha? Que se vista bonita como achar que fica melhor? Que dirija? Cuide de sua própria vida financeira? Que tenha amigas com quem possa contar, sem disputa? A sociedade toda faz questão de salientar que essa mulher na realidade é infeliz porque não vive para um homem. Não nos ensinam liberdade.

Liberdade, com muita sorte, a gente vai aprender bem depois. Dependendo dos modelos de mulheres com quem se cruza na vida, dos nossos próprios ideais e espírito de rebeldia. No meu caso, os dois fatores foram intensificados pela minha inserção, que foi um mergulho de cabeça e sem volta, no movimento feminista. Mas e quando a vida nos aprisiona antes? E quando, menina ainda, as armadilhas sociais já armaram sua teia cruel de mecanismos de subjugação e dependência, dos quais raramente se escapa? E quando já nos convencemos de que pertencer e depender é melhor do que se arriscar sozinha na vida fria e dura, quando se é mulher?

Minha única resposta a estas questões é que precisamos reforçar os modelos de liberdade feminina. Mostrar as alternativas sociais de ser mulher. Não para determinar um outro rumo obrigatório, mas para que haja escolhas. A Universidade me colocou em contato com mulheres que eu admiro, com professoras de nível intelectual e capacidade de debate que botam no chinelo qualquer um. São modelos pra mim e sabem disso. Entrar no meio acadêmico e ver aquelas mulheres ali, tratando de questões sociais e travando embates duros mudou minha vida porque a briga delas me envolvia, eu também era afetada por machismo, violência, opressão. E não era a fala, somente. A forma de se construir enquanto mulheres era diferente, óbvio. A percepção de que podia admirar mulheres e amá-las para além do papel que até aquele dia haviam me ensinado foi um marco impossível de retroceder e que me fez aproximar de diversas outras pessoas, homens e mulheres, que não traçavam suas vidas considerando mulheres como seres objetos de enfeite.

Não há liberdade plena, estamos longe disso, é importante que se diga. Os tabus e imposições são dificilmente superados em sua totalidade, mas há escape, e muito! É possível se estabelecer no mundo de outra forma, ainda que com dificuldades, dá pra se esgueirar pelas fendas da vida se fazendo gente, se sabendo humana, se sentindo corpo e não objeto.

Não deixar de sair com alguém porque não fiz a unha do pé, não ficar neurótica com depilação, roupa, sapatos, cortar o cabelo curto e me sentir linda, usar lingerie se quiser. Sobrancelha uma vez a cada dois meses é a realidade agora. Sair de calça jeans e sentir que as pessoas se interessam por mim da mesma forma, só que são outras pessoas e não os babacas dos carros. A triagem passa muito mais pelo outro do que pela mulher. Que pessoas se aproximam da gente exigindo modelo estético? Que tipo de homem acha uma mulher bonita pelo padrão de corpo e beleza estritamente midiático? O que quer um homem que vai pra cama com uma mulher reparando se ela usa rímel à prova d’água? E pior ainda, os que julgam a mulher por usar maquiagem “pesada”, lingerie e unhas de jeito socialmente “mal vistos”?

Já não sei mais, felizmente me tornei plenamente incapaz de responder a tais questões e garanto que compensou o não esforço. Pude ouvir, a partir daí, as histórias, o choro e o riso das amigas que construí e que certamente se sentariam comigo de quase pijama na hamburgueria. Ouvir a raiva e a admiração pelos meus posicionamentos na Academia e na profissão. Sentir a dor e o amor das relações construídas sem a busca do jogo de desinteresse e de disputa estabelecidos quase como regra. Saber que o outro gosta do seu cabelo, do seu cheiro, do beijo que se mistura ao suor, do humano que há em você, da capacidade de rir e chorar, de se doar, da braveza. Há quem não veja tanta beleza assim na realidade, é fato, já que tentar se despir um pouco das capas sociais é também ver e ser visto livre das idealizações românticas que todos fazemos de nós mesmos, mas é o preço por algo que tanto se diz procurar, a profundidade das relações em um mundo de rasuras.

*Andréa Benetti é pedagoga, formada na Puc Minas pelo ProUni, mestranda em Educação pela Unifal, pesquisadora de gêneros e juventude, e conselheira tutelar em Poços de Caldas, regiões sul/oeste.

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