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Sexo ou abuso?

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Abuso, palavra áspera. Falar em abuso nos direciona, quase que imediatamente, a algo que parece raro, exceção, coisa absurda. Por isso mesmo, o imaginário em torno de abusos sexuais e estupros diverge completamente da realidade do que encontramos no Brasil. Minha intenção neste texto, no entanto, não é a abordagem jurídica ou os quesitos legais que os envolvem, mas as questões de ordem sócio-culturais a partir da ótica de gênero, de minhas reflexões entrelaçadas com o trabalho do Conselho Tutelar e do que, infelizmente, não tenho conseguido deixar de ver.

Abusar de alguém é ir além da conta, é ultrapassar os limites do corpo do outro, mas não só. Abuso significa a invasão de corpo que perpassa a alma porque invariavelmente possui caráter sexual em sentido de humilhação. Abuso e estupro se relacionam intimamente com jogos de poder que são sociais e altamente enraizados em qualquer cultura machista. Esse é o ponto. Não nos fazemos capazes de diferenciar sempre o sexo do estupro e o toque consentido de abuso, nos discursos rotineiros, exatamente por sermos uma sociedade moralista em relação ao sexo e ao prazer, o que resulta na tão falada culpabilização da vítima, que em geral é mulher.*

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Quando afirmo que crianças pequenas são abusadas e que esses abusos são mais frequentes do que imaginamos, quando toco no trauma que carrego por ter visto essa criança brincando na delegacia, somente com uma parede dividindo seu espaço com o do agressor, que pode ser e é, grande parte das vezes, quem ela chama de pai**, quando escrevo agora que esta criança vai precisar ser submetida a um coquetel contra as DST’s que pode ter contraído e que isso irá lhe custar uma internação terrível, e quando sei do sofrimento que esta família carregará pelo resto da vida, toda vez que ouvir a criança contando e recontando sobre um fato que ela não sabe ainda o que é, mas que lhe doeu a ponto de precisar dizer, quem me ouve tende a atribuir adjetivos ao abusador que lhe parecem retirar a consciência do ato: doente, monstro, desumano.

Creio que seja importante tocar nesse ponto e entender que abusadores, estupradores, em sua maioria, não são doentes nem monstros e nem psicopatas. São quase sempre homens criados para fazer o que estão fazendo: se utilizar dos corpos das mulheres para fins sexuais como forma de reiterar poder. Estupradores sabem bem o que estão fazendo, por isso estupro é crime e não doença. Os abusadores, em setenta por cento dos casos***, são conhecidos próximos das vítimas, e crianças e adolescentes são as maiores vítimas de abuso. A maior característica do abuso, sob meu ponto de vista, é a desumanização da vítima, que sofre a alienação de seu próprio corpo, corpo que se torna instrumento de uso sexual, seja sob ameaça ou mero exercício de poder social, me parece bastante claro também que os abusos são mecanismos muito eficientes de manutenção de hierarquias em diversos âmbitos: familiares, trabalhistas, sociais, e que apresentam, inclusive, caráter profundamente relacional de dominação entre os gêneros.

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Enquanto tratamos de crianças menores, concordaremos em massa sobre o absurdo do que estamos lendo. Agora, se a menina for adolescente, doze ou treze anos, e entrou no carro tarde na noite? E se a moça já havia se relacionado anteriormente com o abusador? Mas e se ela for sua esposa? E se a menina está bêbada na festa? E se ela que o chamou pra dentro do apartamento? E se está nua diante dele, mas não quer mais transar? Se ela pegou carona e só quer ir pra casa, como pessoas que pegam carona com alguém? Se sua roupa for curta? Nesse ponto, a discussão sempre muda e nos redirecionamos ao debate inicial: O que é sexo e o que é abuso? Não parece difícil: sexo é algo consentido conscientemente, lembrando que no Brasil não há consentimento para menores de 14 anos, o que configura estupro presumido. Abuso é algo não autorizado ou quando a pessoa não tem condições de responder por si ou mesmo quando consente sem entendimento completo do que significa tal prática. Qualquer toque não autorizado com pretensão sexual é abuso e qualquer relação sexual não consentida é estupro e esse conceito se tornou muito amplo, felizmente.

Parece claro quando dito assim, mas rotineiramente não é. E não é, exatamente pelo fator moral, pela nossa dificuldade em aceitar que mulheres transam, têm desejo, podem fazer sexo como quiserem e quantas vezes lhes for conveniente, com quantos homens ou mulheres sentirem vontade e usar a roupa que queiram usar, ainda que intencionalmente sensual. Que podem beber o que quiserem que seus corpos ainda serão seus corpos. Nunca deixarão de ser. Minha fala é tão ridiculamente óbvia que creio que só a utilizo para tentar reafirmar que é exatamente nesse cenário social que podemos facilmente responsabilizar a vítima pelo crime e que é isso que torna possível uma sociedade com tantos abusos! No fundo, há implícito um argumento de que “ela queria”, o que na militância chamamos de “teoria do cu doce”, em que homens fingem acreditar que toda mulher quer transar com ele, basta dar uma forçadinha (que se chama estupro).

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Se a culpabilização parece ser o fator de contribuição primordial de manutenção para uma sociedade abusadora, a alegação do abusador, ou mesmo do homem (todos), com caráter de instinto puro, certamente coroa essa permissão. Atribuir ao homem status de incapacidade de raciocínio quando está excitado, por mais incrivelmente imbecil que seja, é corriqueiro e reforça imensamente o caráter de licença social para abusar. Quando eu crio uma personificação do desejo instintivo descontrolado no gênero masculino, permito todas as atrocidades que têm sido cometidas contra mulheres em relação a seus corpos. Acredito que homem não se controla diante de roupa curta? Creio sinceramente que estuprar alguém se dê em decorrência de desejo sexual? Comparo estupro com sexo? Consigo conceber a ideia de que alguém abuse da própria filha pequena por algo que ela tenha feito? Estabeleço que estuprar a namorada não é estupro porque eles se relacionam sexualmente? Acho que mulher tem que se preservar e que tudo depende de sua postura? Entendo que homem é homem e é diferente? Responder ou pensar sim, ainda que de relance, a qualquer dessas perguntas significa alienar o sexo da mulher, seu corpo, sua possibilidade de desejo e conceder licença social eterna para os abusos.

Por fim, acredito ainda que nenhuma política de conscientização ou repressão ao abuso sexual será eficiente se a sociedade não caminhar para o entendimento do que é sexualidade. Sexualidade é algo natural e intrínseco aos seres humanos desde o nascimento. A todos. A sexualidade faz parte dos corpos, é algo indissociável e não é sinônimo de relação sexual. Em qualquer idade temos desenvolvimento e vivências sexuais, que se modificam conforme a fase da vida. Portanto, conceber essa naturalidade da sexualidade e do desejo, do toque corporal e do sexo, é necessário para educar crianças. Entender que crianças não fazem sexo, mas que desenvolvem sexualidade, é fundamental para coibir nossos discursos moralistas. Ter clareza de que as pessoas têm desejo sexual e que isso não lhes faz passíveis ao abuso! Compreender claramente que as crianças elaboram jogos de descobertas corporais e que isso não lhes faz adultas ou avançadas pra suas idades. Entender que sexo com adolescentes é crime, não porque elas não sintam prazer, mas porque sua idade de amadurecimento corporal e emocional precisa ser vivenciada com alguém em idade compatível, para que essa relação não configure jogo de poder e imposições culturais diversas. Quando entendermos que abuso não é sexo, é jogo social violento de poder e que não é movido pelo desejo sexual, mas pelo desejo de invasão, de dominação social e de gênero e que suas justificativas culturais de culpabilização das mulheres são instrumento de manutenção de desigualdades e colaboração com crimes violentos, mesmo contra crianças tão pequenas, aí será possível discutir com clareza as políticas públicas de combate ao abuso.

*Dados de nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para ler na íntegra, clique neste link.

Andréa Benetti é pedagoga, formada na Puc Minas pelo ProUni, e conselheira tutelar em Poços de Caldas, regiões sul/oeste.

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