Gostaria de falar sobre os MUROS.
Muros que nos cercam, que cercam nossas casas, que constroem nossas ruas, estamos cercados por muros em toda parte.
Às vezes muros de concreto, às vezes muros sociais.
Hoje, os muros me parecem as primeiras estruturas de desejo que as pessoas têm quando compram uma casa: “Ah, vou fazer um muro de 3 metros de altura, com cercas elétricas, câmeras de vigilâncias, alarmes, vigilantes de rua e minha casa será linda… ou vou morar no paraíso do condomínio fechado, distante de tudo e de todos, sem a maravilha da diversidade urbana e humana… aí viverei sossegado aqui entre meus iguais, que de tão iguais nem os conheço!” …meu Deus, quanta ilusão.
E digo ilusão pois se elegem os muros como super protetores, agentes máximos da segurança urbana. Incrível como tão logo nos esquecemos que pagamos impostos para nossa segurança pública. Penso e sempre alerto meus alunos em sala de aula: “Quanto mais alto for o muro e maior a vigilância e distanciamento dos olhos da rua para a sua casa ou negócio, maior o armamento e planejamento para o furto ou roubo àquilo que é privado”.
Penso então na casa, ou no que é a casa.
Bom, a casa é o lugar que abriga, que acolhe, lugar de viver e aprender a viver numa diminuta estrutura social a que chamamos de família. Fiquei emocionada quando, em viagem a Portugal, fui pesquisar na universidade de Lisboa e me deparei com os FOGOS, e qual não foi minha surpresa, fogos em Portugal são as habitações. São chamados números de fogos o que damos o nome no Brasil de FRIAS unidades habitacionais. Pensemos por um instante no distanciamento da humanidade da habitação no Brasil em relação a Portugal!
Enquanto em Portugal a casa é o FOGO que nos acolhe, que nos abriga, aqui no Brasil somos tratados como UNIDADE, como peças ou números distribuídos em planilhas FRIAS E DES-HUMANIZADAS (me permitam aqui uma licença poética quanto ao uso da palavra ‘desumanizadas’).
Agora a casa é muro com cerca elétrica, sem flores, sem cores. Só nos restaram MUROS? Onde estão as FLORES?
Doce e pérfida ilusão. Pérfida ilusão também pode parecer uma expressão forte, mas que significa realmente a sua essência. Existe um campo da economia que é gerado e sustentado pela sensação de insegurança que o ‘nosso’ espaço público nos passa, que em conjunto com a mídia diária, que nos mostra em tempo real o espetaculoso terror da guerra explícita e não declarada que vivemos no nosso dia a dia, nos faz crer que o espaço lá fora é perigoso, que o estranho é o perigo eminente e que portanto o isolamento e individualismo devem ser a regra para a boa vida! Vamos equipar como FORTES de guerra prontos para a defesa ao ataque eminente do outro, semelhante? Não… o estranho…
Muros são a ideia falsa da segurança pública e muros são nossas ruas sem gentileza e sem flores… Então, onde esta o paraíso? O que escolhemos para o espaço público de todos, MUROS ou FLORES?
Queria minha cidade repleta de MUROS DE FLORES, onde percebesse o som das crianças brincando dentro das casas e em seus quintais, ao invés dos gritos e urros de um monólogo da guerra de videogames, trancados em quartos e isolados do mundo e da cidade.
Queria minha calçada de cheiros de cafés da manhã à espera do pão com manteiga, com trepadeiras se alimentando das águas dos rios abertos a borbulhar ao longo do caminho para a escola, para a casa e para o trabalho.
Queria em minha calçada o cheiro do almoço ao meio dia e da meia luz a iluminar meu caminho à noite ao voltar para casa em noite de lua não tao clara.
Onde está a troca entre o espaço público e privado? Está na linha reta do muro cinza e sem vida ou na janela alta da casa de porão ventilado? Está na vitrine das lojas ou no muro de tijolos, já rebocado e com placas de ‘proibido colar cartazes’?
Que tipo de legislação municipal apoia a manutenção e renovação de alvarás para a permanências de ditos ‘tapumes’ , chamados temporários e que se tornam eternos, feitos em alvenaria e rebocados invadindo nossas calçadas, prejudicando o circular de pessoas em seu próprio espaço público?
Me lembro da linda e festiva Rua Rio de Janeiro no centro de Poços de Caldas. Era menina e adorava andar de bicicleta e depois passar nas casas de suco e vitaminas que se repetiam nos antigos e adaptados quartos de hotéis, já em desuso. Adorava a limonada suíça ou as batidas com 3, 4 e ate 5 frutas em combinações descritas em letras de isopor coladas na parede! Nossa, me lembro do gosto, impossível de ser identificado, mas que somente ali poderia existir! Como era bom e rotineiro aquele barulho do liquidificador ao passar na calçada, parecia o chamado de minha mãe ao final do dia para que eu tomasse banho para jantar em família, depois de longas brincadeiras nas ruas.
Esse era o cheiro e eram as cores da Rua Rio de Janeiro. Hoje o que sinto é a frieza do muro, o distanciamento e a agressão nada gentil das placas de ‘proibido’[colar cartazes], passando o recado de que ‘olha aí menina… isso tem dono hein…’, mesmo invadindo a metade da calçada. Isso não acontece somente na Rua Rio de janeiro e sim em todas as obras da cidade.
A invasão do espaço público ocorre também em lojas que colocam mercadorias em frente a suas portas em recorrente invasão do espaço público, e gostaria de citar aqui também as mesas e cadeiras que são sempre bem vindas nas calçadas se não fossemos obrigados a consumir simplesmente por estarmos sentados.
Estranho é pensar que TODOS somos donos de nossas calçadas, do passeio público onde vivemos e aprendemos a (CON)viver ou viver com as pessoas, por entre as flores, por entre as diferenças, por entre cores e cheiros que somente a ocupação humana pode proporcionar, com tamanha diversidade e emoção, em uma rua diversa, rica de pessoas, rica em usos diverso e extremamente interessante para olharmos e sabermos que o dia amanheceu novamente e que tudo tem a oportunidade de ser feito novamente e melhor que ontem. Essa é a beleza da cidade, é a possibilidade do novo no mesmo lugar, que eu re-conheço e que me identifico, me sinto próprio do lugar, isso é público e ninguém nem nenhum MURO tem o direito de me privar das flores… me devolvam flores…
Desejo leis que legislem para além das punições, mas que peçam flores, cores e futuros em fachadas em reformas, que ao invés de estabelecer duros prazos para a retirada de tapumes ‘definitivos ou não, de alvenaria ou madeira’, mas de qualquer forma horrorosos e nada gentis, que as leis pedissem a gentileza das trocas urbanas, com privações temporárias da troca entre o espaço público e privado, mas que os tapumes sejam o desenho da obra finalizada, que esse ‘tapume’ traga beleza ao espaço público enquanto estiver em obra e que esse espaço em mudança possa surpreender, para melhor, o uso prazeiroso de nossas calçadas, do ir e vir e que possa dar sentido ao encontro com o outro, a tal ponto de se construir cenários belos e repletos de lembranças, boas e com cheiros, cores e flores.
Penso na praça e em suas ruas adjacentes: Um espaço que se construiu ao redor de equipamentos públicos de saúde, de serviços e de lazer, que nasce pela água que CURA. Um espaço que se configurou em lugares de contemplação, onde o desenho urbano teve papel marcante e estruturador de um cenário para a promoção e convívio sociais. Um pensamento e uma prática urbanística pensada para se constituir num espaço público coletivo.
Esses muros servem para discutirmos o que é a esfera pública, o que são e onde estão nossos espaços coletivos e sociais e onde estão os espaços de transição entre o público e o privado.
Olhando a construção do espaço público de Poços de Caldas sob a ótica de Hannah Arendt e Milton Santos, penso na construção de um espaço urbano que tem como premissa a “dimensão” ou “esfera” pública, de uso intenso composto por uma sociedade, presente desde o final do século XIX, e que se desenha no início do século XX.
Trata-se de um grande desafio para o urbanismo atual entender como o espaço público passa por diferentes redefinições no intuito de atender às novas relações sociais e às dinâmicas econômicas e imobiliárias presentes nas cidades. Relações sociais que vão além do projeto arquitetônico numa fusão que transforma o espaço, impactando-o e remodelando-o, às vezes, criando espaços de aglomerações ou, às vezes, induzindo ao esvaziamento.
Esse espaço físico que se ocupa é que define o lugar do indivíduo na estrutura do domínio social e político e é também, não o espelho da sociedade, mas o lugar das relações sociais que define o cidadão.
O lugar do público. Qual é esse espaço e o que é?
É uma busca pelo conceito de esfera pública, responsável pela diferenciação de uma praça ou de um lugar caracterizado por uma intensa apropriação coletiva. Nesse sentido, é fundamental reconhecer e compreender este conceito e suas transformações para entendermos o espaço urbano, às vezes público, às vezes privado, mas principalmente coletivo: é o verdadeiro sentido das cidades.
E termino a reflexão sobre muros com a citação do arquiteto espanhol, Manuel de Solà Morales
Solà-Morales(2001), ao abordar a questão das intervenções em áreas centrais, relata que os projetos de edifícios privados devem contemplar uma carga social e observa que “a cidade é precisamente o lugar onde o particular pode ser – e amiúde é – social: tanto mais que o público, a boa cidade é aquela em que os edifícios particulares_sobretudo os bons_ têm valores sociais que os extrapolam, e nisso está seu modo de ser urbanos.