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Alguém defende que haja abortos?

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andrea-benettiAlguém defende que haja abortos? Há alguém que julgue muito bom o fato de existir abortos? Há, no mundo, uma só mulher esperando a descriminalização para correr lá e realizar o procedimento? Alguém que considere uma inovação poder contar com abortos seguros? Ou há quem defenda a descriminalização do aborto porque já considera toda a complexidade e as mortes cruéis que o tema envolve?

Semana passada o Supremo Tribunal Federal considerou que aborto até o terceiro mês de gestação não é crime, julgando um caso específico. A decisão causou um rebu social imenso na Rede, já que pode (e deve) abrir precedentes para decisões semelhantes em outras instâncias e até se tornar jurisprudência. Muitas pessoas se mostraram indignadas com a decisão, outras consideram-se tristes, todas estas se declarando a favor da vida, por isso contra o aborto. A coluna desta quinzena busca abordar o tema, considerando sua efervescência e buscando argumentação sobre os principais pontos que abarcam a questão da descriminalização. Para tanto, abordarei um a um os principais argumentos em relação à descriminalização do aborto no Brasil, iniciando pelo mais repetido:

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Como alguém tem coragem de matar um bebê? Muitas pessoas, às vezes verdadeiramente ressentidas, com pena da “criança”, acreditam sim que o aborto é o mesmo que assassinar bebês. Isso é resultado da forma com que a mídia trata o assunto, de forma desonesta e buscando uma comoção com a “vida”, que desconsidera completamente a realidade da questão. Sugiro fortemente o texto da especialista, a bióloga Verinha Dias, no link, que esclarece tudo o que não sabemos sobre embriologia.  Vale a pena esclarecer ainda que quem determinou o tempo de 12 semanas de gestação para que o aborto seja seguro foi o Conselho Federal de Medicina e este mesmo tempo é o padrão de países que já descriminalizaram. Este tempo é o que é utilizado em casos de abortos legais, estupros, etc., e é determinado pela ausência de atividade cerebral que caracterize o início da vida, assim como é com o fim. Essa é a questão chave para discutir aborto de forma honesta: o início da vida se dá assim como o seu fim, quando há atividade cerebral, já que o sistema nervoso do embrião ou do feto ainda não está formado. Não é possível nos basearmos mais em argumentos de concepção como vida, óvulo é vivo, espermatozóide é vivo. Tudo o que se liga aos organismos animais é, de muitas formas, vivo, mas considerar que a expectativa de vida, a formação da vida, as células embrionárias, o ovo fecundado são sujeitos de direito absoluto e mais ainda, com direitos superiores aos da mulher, ser humano que o carrega e comparar esse início de formação de vida a uma criança nascida, é sim um argumento de desconhecimento total a respeito da questão.

Sou contra o aborto porque sou a favor da vida: Nada é mais contra a vida do que a criminalização do aborto no Brasil. Nosso país criminaliza o aborto e termina por condenar milhares de mulheres, a grande maioria adolescente, pobre e negra, à morte todos os anos, sendo o aborto clandestino a maior causa de morte ligada à maternidade no país. Se declarar a favor da vida e contra descriminalizar o aborto é o mesmo que dizer que embriões merecem preservação, mas considerar justo que milhares de meninas morram em abortos realizados com agulhas de tricot, nos corredores das periferias. Este argumento é duplamente falho porque, além de desconsiderar a morte das mulheres, falsamente crê que a criminalização impede a realização de abortos, o que será discutido mais a frente.

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É muito fácil engravidar e depois sair fazendo aborto: Esta fala é bastante dita por quem desconhece a realidade do sofrimento emocional que qualquer aborto causa à mulher, ainda que esteja entre os casos que a lei brasileira permite: estupro, anencefalia e risco de morte para a mãe. Sugiro o documentário “O aborto dos outros”, produzido pela equipe do Dr. Jeferson Drezetti, que mostra a realidade do aborto no Brasil. Quem acredita que as mulheres vão ali na esquina fazer um aborto e voltam para almoçar alegremente ou que utilizarão aborto como método anticoncepcional não possui a mínima noção do que é um aborto, procedimento profundamente traumático, dada a carga “funcional” que a sociedade atribui à maternidade.

Aborto será utilizado como método anticoncepcional: Este argumento circula entre as pessoas que creem que a descriminalização aumenta o número de abortos, ao contrário da realidade. Todos os países que descriminalizaram reduziram o número de abortos. O Uruguai não computou sequer um caso a mais do que quando o procedimento era clandestino. As mortes sim são reduzidas a muito próximo de zero. Países como a França, por exemplo, que já possuem mais de 40 anos de descriminalização, reduziram a taxa de abortos de forma drástica porque, concomitantemente, introduziram políticas intensas de prevenção e conscientização, que, infelizmente, dependem de quesitos culturais e são de longo prazo.

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Por que não fazemos políticas de prevenção? Primeiramente, é necessário lembrar que até os países mais avançados em termos de políticas preventivas de educação sexual têm o aborto descriminalizado. A Itália do Papa, o tão tradicional Japão etc. Quanto ao Brasil, fazemos política de prevenção da mesma forma que fazemos qualquer outra política no país: de forma hipócrita e desconexa da realidade. Geralmente, os defensores desta linha são os primeiros a querer sair no tapa com os professores que discutem sexo em sala de aula de forma aberta, envolvendo seu caráter social. Temos a cara de pau de dizer para as crianças que a gravidez é o encontro de um espermatozoide e um óvulo. Meu filho chegou em casa perguntando como é que faz para que os dois, espermatozoide e óvulo, se encontrem! Excluímos o sexo da questão da gravidez! Somos patéticos, atribuímos caráter não social a uma questão que é social e é cultural! O Brasil é um país com tanto atraso nas políticas de prevenção à gravidez que a maioria das pessoas ainda tem medo de falar de sexo com as crianças e acredita que introduzir o assunto irá induzi-los a transar precocemente. A verdade é que descobrimos sobre o sexo da maneira errada, conduzimos nossa vida sexual de forma estereotipada e nos submetemos às formas bilogicistas de tratar gravidez e sexo, inclusive nos consultórios médicos.

A criminalização do aborto não impede sua realização, mas condena milhares de mulheres (pobres) à morte: o fato do aborto ser criminalizado no país não impede que abortos sejam feitos. A grande questão é que as mulheres de classe média e alta realizam o procedimento com toda segurança, em clínicas especializadas e médicos caros. Pagou, tem segurança pra fazer aborto. Não pagou, morre. Uma revista “feminina” de grande circulação recentemente trouxe relatos de mulheres da classe média que realizaram aborto no Brasil: anestesia, viagens, discrição, médicos de confiança, apoio da família. Tudo o que o dinheiro pode proporcionar no Brasil. Esse fato demonstra o que todos nós já sabemos: o aborto é permitido no país, mas se a mulher for pobre o risco de morte é enorme. Mais uma vez este argumento está ligado ao que se segue.

Aborto é uma questão social: Quando apontamos que a mulher pobre é quem morre em abortos, estamos alertando para o fato de que mulheres de todas as classes sociais realizam abortos, mas há seletividade na condenação à morte. Quem morre são as mulheres de periferia, em sua maioria, negras. Estas mulheres são as mais afetadas pela criminalização do aborto, já que as condições são precárias em todos os aspectos, o próprio aborto, o atendimento de saúde posterior e também as condições sociais que contribuem para a (falta) de opção do aborto.

Na hora de fazer estava gostoso! (Considerando os índices de anorgasmia das mulheres, me poupem desse argumento, mas vamos lá): A criminalização do aborto é uma política machista de regulação do corpo da mulher. Parece brincadeira, mas a maioria dos contra aborto é a favor em casos de estupros, o que demonstra não preocupação com a “vida” do feto, mas uma busca de “condenar” a mulher à gravidez porque ela fez sexo, teoricamente com prazer. Vejamos o absurdo desta visão: ninguém questiona o prazer do homem na relação sexual, ele é óbvio, e nem questiona a falta de cuidado com a concepção, quando sabemos da resistência deles quanto ao uso da camisinha e grande falta de responsabilidade paterna nos cuidados com a criança no Brasil. Se a pessoa considera vida a do feto, precisa considerar em qualquer circunstância. Atribuir ao prazer do sexo a obrigatoriedade da maternidade só reforça o quanto nossa sociedade é hipócrita quanto ao sexo e quanto ao que se espera da mulher.

Por que ela não doa a criança depois que nascer? Demorou, mas chegou! Essa fala é profundamente maldosa porque quem fala sabe exatamente o peso que possui a cobrança pela maternidade no país e ela desconsidera que ninguém deva ser obrigada a passar por gravidez e parto sem que deseje. Vinda de homens, essa fala é sobretudo sacana, não há outro adjetivo. Além de não fazer a mínima ideia nem dos significados físicos nem dos sociais de tudo o que implica uma gravidez, parto e maternidade, dizer: tenha o filho e depois doe é algo muito cruel, porque aí sim implica em uma vida, implica em se desligar de uma criança após o nascimento, implica em ser maltratada no hospital, explicar à família algo inexplicável e desconsiderar a autonomia de corpo da mulher. Não somos objetos! Somos pessoas que devem ter autonomia e escolha sobre o corpo e comparar esta escolha dizendo que “a criança não teve escolha” é encurtar uma conversa distorcendo fatos, porque não estamos falando de uma criança, mas de um embrião sem atividade cerebral e. por isso mesmo, sem desenvolvimento sensorial.

“A mulher teve escolha, mas a “criança” não”: Primeiro que ninguém aqui está falando em criança, estamos tratando de embrião em fase anterior à atividade cerebral, como já exposto. O mesmo embrião que já é alvo de abortos em casos permitidos pela lei brasileira, sem comoção social. Comparar os direitos de embrião ou feto com até 12 semanas de gestação aos direitos das mulheres que morrem de sangrar em abortos ao introduzirem galhos, cabides e outros objetos no canal uterino em banheiros, de forma clandestina e insalubre, é realmente ser cruel no ápice da possibilidade do ser humano. Infelizmente, é muito comum ouvir que a mulher merece mesmo morrer, já que se “decidiu” pelo aborto. Reforço aqui a questão da desvalorização da mulher como sujeito de direitos, do entendimento de que somos um objeto que “serve” como envólucro de um bebê e nada mais e que depois do parto (não desejado), ainda deve dar conta de todo o cuidado sozinha, sendo culpada, cobrada e julgada.

O tema aborto é em si um tabu social, a simples menção ao aborto arrepia as pessoas. Consideramos desumanos quem se manifesta a favor de descriminalizar e condecoramos de humanidade a hipocrisia da nossa sociedade que capenga em sua falsa moral, já que o país já permite aborto em casos de estupro, o que mina esse argumento de vida do feto e nos conduz para o entendimento de que a criminalização é, sim, muito mais voltada para o reforço da normatividade em torno da sexualidade feminina! Uma sociedade que condena milhares de mulheres à morte todos os anos em um país que já foi alvo de cobranças pela ONU, devido ao alto índices de mortes em abortos clandestinos e que só agora, tão tarde, está conseguindo ao menos olhar para esta questão, graças ao esforço do feminismo e ao grito de algumas vozes ainda isoladas. Ninguém quer abortos, ninguém deseja que abortos ocorram, mas eles ocorrem em qualquer lugar do mundo. Quem aborta são nossas mães, tias, filhas, mulheres comuns, ricas e pobres, mas quem morre, nós sabemos. As mesmas condenadas à marginalização, à maternidade estigmatizada, aos rótulos sociais, as que não têm dinheiro para pagar clínicas caras nem contar com “seu médico de confiança”: as mulheres pobres.

* Andréa Benetti é pedagoga, formada na Puc Minas pelo ProUni, e conselheira tutelar em Pocos de Caldas, regiões sul/oeste.

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